Américo Espallargas e Beatriz Chevis
O Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), sediado na Suíça, decidiu, no último dia 1º, favoravelmente à IAAF (Federação Internacional de Atletismo), contra o pedido da corredora sul africana Caster Semenya e da Federação Sul-africana de Atletismo. Com isso, a pretensão da atleta de anulação dos regulamentos da IAAF que tratam de atletas portadoras de hiperandrogenismo foi negada, de modo que, para competir, Semenya precisará tomar bloqueadores hormonais para diminuir o nível de testosterona que naturalmente produz.
A decisão, por maioria de 2 votos a 1, agrava a polêmica a respeito do tema e parece ter aberto as portas para que outras federações internacionais sigam o mesmo caminho, podendo afetar a maneira como o esporte passará a funcionar no século XXI. Há algumas razões tanto para a polêmica quanto para a mudança.
No que toca à polêmica, em primeiro lugar, a decisão não é definitiva, cabendo recurso ainda ao Tribunal Federal Suíço e posteriormente a abertura de procedimento na Corte Europeia de Direitos Humanos, sem mencionar procedimentos próprios na Justiça da África do Sul. Em outras palavras, a batalha judicial está longe do fim.
Em segundo lugar, a sentença do TAS – de 165 páginas – não foi divulgada na íntegra, tendo apenas um resumo de seis laudas sido tornado público. A importância do caso demandaria mais informações à comunidade esportiva internacional, inclusive porque a decisão, segundo os poucos documentos disponibilizados, define a licitude do regulamento em termos gerais, mas não faz o mesmo para cada caso específico: o TAS fez grandes ressalvas à aplicabilidade do regulamento em cada caso concreto.
Em terceiro lugar, a sentença do caso Semenya diverge de decisões anteriores do próprio TAS. Muito embora a aplicação do princípio do stare decisis, segundo o qual decisões pretéritas criam precedente vinculante aos tribunais, não se aplique ao TAS em razão de sua natureza como corte arbitral e não estatal, é comum que, em casos de alta complexidade, o tribunal se aproxime de sentenças anteriores, o que não aconteceu. Significa dizer que novos casos também não precisarão observar o precedente ora criado, gerando insegurança jurídica.
Em quarto lugar, a despeito de o TAS ter expressamente estabelecido que a aplicação do regulamento da IAAF é complexa e precisa ser observada casuisticamente, na mesma oportunidade declarou a sua validade na íntegra, sem considerar as suas próprias ressalvas. É dizer, a decisão do tribunal parece contradizer a si própria.
Por fim, em quinto lugar, o tema trata fortemente de um embate entre direitos humanos, ética, fair play e ciência. Não bastasse essa dificuldade intrínseca, a questão científica tem sido duramente criticada pelos especialistas que atuaram no caso no sentido de que a documentação apresentada pela IAAF era cientificamente questionável. A crítica gira em torno do fato a IAAF ter encomendado apenas um estudo, cujos resultados não foram comprovados quando reproduzidos por outros cientistas.
No que diz respeito à mudança do paradigma de como o esporte é hoje, por sua vez, ela está relacionada à afirmação do TAS, na sentença, de que a referência ao gênero de uma pessoa não necessariamente constitui razão justa e efetiva de separação (isto é, categorização) de atletas em termos competitivos. Em outras palavras, o que o TAS afirmou é que não necessariamente a separação em naipes femininos e masculinos é justa.
A partir dessa assertiva, há dois caminhos que se traçam: de um lado, a separação em categorias competitivas, a partir de critérios objetivos (não de gênero) a serem delimitados por cada federação – algo que já se cogita no meio esportivo internacional, tal qual é feito no esporte paralímpico –, e, de outro lado, a definição técnico-jurídico-esportiva de se pessoa é considerada homem ou mulher.
É nesse segundo ponto que reside grande parte da crítica, na medida em que essa definição pode ocasionar a discriminação com base em gênero, voltando-se aos famigerados (e vexatórios) testes de sexagem no esporte. Seguramente, trata-se de retrocesso na proteção aos direitos humanos e, consequentemente, de um caminho do qual o esporte deve se afastar.
Além disso, é necessário destacar que a decisão do TAS poderá gerar inúmeros questionamentos em outras modalidades a respeito de vantagens indevidas ocasionadas por atletas excepcionalmente rápidas ou fortes. No caso de Semenya, o tribunal entendeu que, em provas específicas do atletismo, atletas portadoras de hiperandrogenismo têm vantagens competitivas relevantes face a outras atletas.
No entanto, em esportes como halterofilismo, boxe, luta, rúgbi e futebol, o problema é dimensionar quais são e como se medem as referidas vantagens, bem como identificar se elas são indevidas ou não. Essa é uma questão ainda sem solução e que a decisão do TAS deixa em aberto.
O desafio ainda ganha contornos especiais quando considerado que o próprio presidente da Associação Médica Internacional (World Medical Association, em original), Dr. Leonid Eidelman, se posicionou contrariamente aos regulamentos da IAAF. Segundo o médico, os documentos são baseados em evidências fracas, retiradas de um único estudo, amplamente controvertido conforme a comunidade científica e, sob sua ótica, sem validade ética. A entidade encorajou médicos do mundo todo a não tomar parte em procedimentos médicos que tenham relação com a diretriz da IAAF (validada pelo TAS) sobre a redução de produção hormonal.
Ante a negativa ao apelo científico e às demais diretrizes dadas pelo TAS, é necessário notar que a cúpula internacional do esporte, por ocasião da decisão, assumiu posicionamento controverso, optando por significativamente priorizar a paridade de condições competitivas dos atletas, mesmo que para isso tenha, aparentemente, sacrificado valores como o pluralismo, a dignidade humana e a democratização do esporte.
Fato é que o tema, central ao futuro da prática esportiva, seguirá em debate nas cortes esportivas e estatais, sem um fim ainda aparente certo.