Atenção: deputados paulistas encontraram um caminho que o movimento esportivo mundial, com especialistas, ciência e muito diálogo ainda seguem estudando. Para eles a questão dos transgêneros no esporte é simples: o sexo biológico é o único critério para definir se um atleta irá competir no masculino ou no feminino.
O PL 346/2019 deverá ser votado essa semana pela Assembléia de São Paulo.
Não. Não dá para concordar com eles. Primeiro porque a Assembléia esta perdendo tempo – e desperdiçando dinheiro – discutindo sobre o que não pode juridicamente. Segundo, porque há questões fundamentais de direitos humanos envolvidas nessa história.
Aviso aos desavisados: a Constituição Federal garante, no artigo 217, autonomia às entidades esportivas. Ou seja, associações, federações, clubes etc. cuidam do que é deles. No caso, a organização do esporte, sendo responsáveis por seus campeonatos, atletas e regras.
Se o Estado interferir, isso pode – e deve – causar uma punição das organizações internacionais do esporte, devido a pirâmide associativa do movimento esportivo. Clubes são filiados a federações, que são ligados a confederações, que seguem (todas) as determinações do Comitê Olímpico Internacional (no caso do futebol, da FIFA). Essa associação é voluntária, e no direito esportivo é conhecida como Ein Platz Prinzip.
Quer fazer diferente? Tudo bem, mas sai da cadeia associativa.
Sobre transgêneros no esporte também é importante saber: a Justiça Esportiva e o mundo do esporte têm debatido e estudado demais a questão. Por gente que entende, vive e se interessa pela área. A ciência, com muita pesquisa, também participa desse diálogo. Intervenção do Estado nessa área não me parece ser o caminho adequado. E claro que isso não tem a ver com perda de soberania. Pelo contrário. Foi o Estado, por meio da nossa Carta Magna, que deu essa prerrogativa.
Mesmo assim, nossos políticos insistem em debater o assunto. Tem deputado querendo proibir transgêneros também no Congresso!
Sério? Repito: uma lei dessas poderia tirar o Brasil de competições internacionais.
Particularmente, não acho justo obrigar alguém a escolher entre esporte e a própria natureza. O esporte tem sabido dialogar com princípios de direitos humanos para encontrar alternativas que não sejam discriminatórias e que também não prejudiquem o equilíbrio da disputa, que garante a incerteza do resultado, algo que é a essência do esporte.
O entendimento predominante tem sido de que é possível excluir pessoas com base no gênero quando a força ou a condição física forem determinantes para o resultado. O detalhe é que isso tem de ser comprovado por testes científicos, e pela entidade que não quer permitir a participação do atleta.
Não pelo “achômetro” de deputados.
O projeto de São Paulo
Deputados da Assembléia Legislativa de São Paulo querem aprovar uma lei sobre a participação de transgêneros em competições esportivas no estado. Pelo PL 346/2019, o sexo biológico seria o único critério para definir se um atleta irá competir no masculino ou no feminino.
Se for aprovado pelos deputados (precisa de maioria simples dos presentes no dia da votação) e sancionada pelo governador João Doria (PSDB), a lei determinará que mulheres transgêneros deverão competir entre homens; e homens trans, entre mulheres. O texto é de autoria do deputado estadual Altair Moraes (PRB)
O relator Heni Ozi Cukier (Novo) afirmou que o projeto é constitucional. Segundo ele, o “Estado tem competência concorrente com a União para legislar sobre o desporto, como prevê a Constituição Federal” e a “a Lei Pelé não traz em seu bojo qualquer regulamentação sobre a participação de transexuais em competições esportivas”.
Conversei com muita gente sobre o assunto, já pesquisei, li e escrevi muito aqui no Lei em Campo sobre o assunto. No meu entendimento, não é bem assim.
Por que não pode
Esse PL não poderia nem passar pela Comissão de Constituição de Justiça da Assembleia Legislativa. Por conta da nossa Constituição, e por princípios de Direitos Humanos.
Sim, tanto a União quanto o Estado têm competência para legislar sobre o esporte. A Lei Pelé é um exemplo. Porém, há várias questões esquecidas pelos deputados, algumas que tornam o projeto inconstitucional.
Como já se disse, o inciso I do artigo 217 da Constituição Federal garante a autonomia das entidades desportivas, dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento. Além disso, esse projeto de lei fere as resoluções da ONU e da Unesco, das quais o Brasil é signatário. Ou seja, é um problema de direito constitucional e de direito internacional.
Quem determina as regras da competição são as confederações internacionais de cada modalidade. Além disso, o Estado não pode construir uma regra discriminatória, que afasta uma pessoa da pratica desportiva por sua condição sexual civil, determinando como a confederação precisará agir. A medida é inconstitucional e discriminatória, até porque não há prova irrefutável de ganho desportivo de mulheres trans sobre mulheres.
Por isso, além de princípios universais de direitos humanos, é preciso lembrar da autonomia esportiva. Ela garante que nenhuma lei estadual – nem federal (!) – possa banir do esporte alguém que o Comitê Olímpico Internacional já disse que pode participar.
A grande discussão do movimento esportivo
A grande discussão tem argumentos dos dois lados que buscam igualdade. De quem defende a a participação pela igualdade de direitos, e da não discriminação. Quem é contra, levanta a bandeira da igualdade de condições entre os competidores, o princípio da “paridade de armas”.
O direito esportivo tem como um dos princípios fundamentais o da “paridade de armas”. Ou seja, dar condições iguais aos competidores para garantir a “incerteza do resultado”, que também é da natureza do esporte. Em tese, homens têm vantagens físicas, como força, sobre mulheres, o que levaria um atleta trans autorizado a jogar a romper com esse princípio.
Acontece que a não discriminação também é um direito consagrado em todas as cartas mundiais de Direitos Humanos, reconhecidas por muitos dos países filiados ao movimento olímpico (inclusive o Brasil), que também prega a bandeira da igualdade. Além disso, está na Carta Olímpica, no sexto princípio fundamental do Olimpismo, que é condenada qualquer discriminação dentro do esporte.
E tudo isso tem sido considerado nessa revolução recente que vive o esporte.
Confrontados com casos como o de Tifanny do vôlei o que se percebe na Lex Sportiva é que os tribunais e o próprio TAS/CAS têm permitido um diálogo com outras ordens jurídicas, principalmente quando a questão versa sobre direitos humanos.
Mas calma lá para quem já quer gritar contra o caminho que o texto vai seguindo. O entendimento predominante tem sido de que é possível excluir pessoas com base no gênero quando a força ou a condição física forem determinantes para o resultado. O detalhe é que isso tem de ser comprovado por testes científicos e pela entidade que não quer permitir a participação do atleta. Não é o atleta que tem que provar que pode competir.
Em função de decisões dos tribunais e dos princípios olímpicos, o COI estabeleceu, em novembro de 2015, novos critérios para permitir a participação de atletas transgêneros. A entidade pede que mulheres trans se declarem do gênero feminino (reconhecimento civil) e tenham nível de testosterona inferior a 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes da estreia em competições femininas. A cirurgia de redesignação sexual não é mais obrigatória.
Embora ainda se verifique que as entidades esportivas têm tentado, com estudos científicos, proteger critérios para a preservação de uma competição mais igual, de acordo com princípios do direito esportivo, é possível também perceber uma clara abertura a questões de direitos humanos. Ou seja, a Lex Sportiva tem permitido diálogos entre diferentes ordenamentos jurídicos e se desenvolvido com isso. São os entrelaçamentos transconstitucionais que proporcionam aprendizados.
Repito: esse assunto tem sido discutido no Brasil e no mundo. Com argumentos inteligentes e científicos dos dois lados. Acredito que o caminho tomado pelo COI e pelos tribunais, de controlar e acompanhar esse processo de transição, respeitando a natureza de cada um e tentando proteger a essência do jogo, seja o mais adequado.
Mas a discussão continua. A reflexão é permanente, e o diálogo, sempre indispensável. Mas não entre políticos.