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Desafios e Perspectivas para a Integridade Esportiva diante da Regulamentação das Apostas no Brasil

Por Udo Seckelmann[1] e Pedro Heitor[2]

Em 27 de outubro de 2023, o Ministério da Fazenda emitiu a Portaria Normativa MF nº 1330/2023, aproximando o Brasil de uma regulamentação das apostas esportivas. Contudo, os recentes escândalos de manipulação de resultados na indústria do futebol, juntamente com as lições aprendidas em jurisdições que há décadas enfrentam desafios na regulamentação deste setor, levantam uma questão crucial: os regulamentos esportivos e de apostas, em suas formas atuais, estão realmente preparados para recepcionar de maneira eficaz os efeitos produzidos pela regulamentação do mercado de apostas esportivas?

Para abordar a questão supramencionada, que constitui o cerne deste breve artigo, é necessário realizar, dentro de suas respectivas dimensões, uma análise comparativa das diretrizes e normas jurídicas presentes nas legislações e regulamentos aplicáveis do Brasil e de outros países com experiência jurídica-econômica no âmbito das apostas esportivas. O objetivo desta análise é tratar das nuances multifacetadas existentes e explorar como podemos nos adaptar para equilibrar a expansão da atividade de apostas esportivas com a proteção da integridade do esporte.

No Brasil, o envolvimento em manipulação de resultados é considerado crime, conforme estabelecido nos artigos 198, 199 e 200 da Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.597/2023), e também é tratada como infração disciplinar desportiva, de acordo com os artigos 241, 242, 243 e 243-A do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, além do artigo 65 do Regulamento Geral de Competições da CBF. Apesar da existência desses dispositivos legais e regulamentares, a falta de conhecimento sobre o que é permitido em relação às apostas, bem como os procedimentos adotados pelas autoridades competentes, continua sendo uma fonte de preocupação significativa. Isso ficou evidenciado nos escândalos recentes de manipulação de resultados. Para ilustrar melhor essa questão, analisaremos algumas das disposições específicas contidas nos regulamentos da CBF sobre apostas esportivas, assim como normas previstas na FA Betting Rules, na Inglaterra – cuja regulamentação das apostas esportivas é madura.

Regulamento Geral de Competições 2023 (RGC):

Art. 65 – Com o objetivo de evitar a manipulação de resultado de partidas, ou a ocorrência de um fato ou eventos específicos no seu decurso, considerar-se-á conduta ilícita praticada por atletas, técnicos, membros de comissão técnica, dirigentes e membros da equipe de arbitragem e todos aqueles que, direta ou indiretamente, possam exercer influência no resultado das partidas, os seguintes comportamentos:

I – apostar em si mesmo, ou permitir que alguém do seu convívio o faça, em seu oponente ou em partida de futebol;

II – instruir, encorajar ou facilitar qualquer outra pessoa a apostar em partida de futebol da qual esteja participando ou possa exercer influência;

III – assegurar a ocorrência de um acontecimento particular durante partida de futebol da qual esteja participando ou possa exercer influência, e que possa ser objeto de aposta ou pelo qual tenha recebido ou venha a receber qualquer recompensa;

IV – dar ou receber qualquer pagamento ou outro benefício em circunstâncias que possam razoavelmente gerar descrédito para si mesmo ou para o futebol;

V – compartilhar informação sensível, privilegiada ou interna que possa assegurar uma vantagem injusta e acarretar a obtenção de algum ganho financeiro ou seu uso para fins de aposta;

VI – deixar de informar de imediato ao seu clube, Federação Estadual ou à competente autoridade desportiva, policial ou judiciária, qualquer ameaça ou suspeita de comportamento corrupto, como por exemplo no caso de alguém se aproximar para perguntar sobre manipulação de qualquer aspecto de uma partida ou mediante promessa de recompensa financeira ou favores em troca de informação sensível.

Parágrafo único – Os clubes e Federações deverão auxiliar atletas, técnicos, membros de comissão técnica, dirigentes e membros de equipe de arbitragem que denunciarem quaisquer práticas ou tentativas de manipulação de resultados visando, nos termos da Lei nº 9.807/99, a sua inclusão em programas especiais de proteção a vítimas de ameaças ou testemunhas de crimes que estejam coagidas ou expostas à grave ameaça em razão de colaborarem com a investigação ou processo criminal.

A título de comparação, a FA Betting Rules, em seu artigo E5, dispõe:

E5.1 Um Participante não deve, direta ou indiretamente, tentar influenciar de forma imprópria o resultado, progresso, conduta ou qualquer outro aspecto, ou ocorrência em, ou relacionada a uma partida de futebol ou competição.

E5.2 Um Participante não deve, direta ou indiretamente, oferecer, concordar em dar, dar, solicitar, concordar em aceitar ou aceitar qualquer suborno, presente ou recompensa ou consideração de qualquer natureza que seja ou possa parecer estar relacionada de alguma forma a:

E5.2.1 esse Participante, ou qualquer outro Participante, falhando em desempenhar o melhor de suas habilidades; ou

E5.2.2 esse Participante ou qualquer outra pessoa (seja um Participante ou não), diretamente ou indiretamente, tentando influenciar de forma imprópria, o resultado, progresso, conduta ou qualquer outro aspecto, ou ocorrência em ou relacionada a uma partida de futebol ou competição.

(Tradução Livre)

Observa-se, portanto, que, embora o objeto de ambos os dispositivos seja análogo, a aplicabilidade das medidas repressivas pela FA demonstra maior eficiência na realidade prática. Isso se deve ao fato de a Inglaterra ser considerada uma das jurisdições mais avançadas na construção de um arcabouço regulatório robusto no setor de apostas esportivas. Na maioria dos casos, os potenciais incentivos econômicos gerados pela manipulação de resultados não superam as ferramentas jurídicas, sistemas tecnológicos e os mecanismos de cooperação existentes. Nesse contexto, em 16 de setembro de 2015, a Gambling Commission, órgão regulador do setor de jogos de azar no Reino Unido, lançou o Plano de Ação para a Integridade no Esporte e nas Apostas Esportivas (Plano de Ação SBI), que visa estabelecer “…o foco esperado das agências, órgãos governamentais de esportes (SGBs), associações de jogadores, operadores de apostas e governo na implementação de ações oportunas e eficazes para identificar e controlar riscos associados à manipulação de resultados e à integridade nas apostas esportivas.”[3]

Além disso, de acordo com o artigo 15 das Condições de Licença e Códigos de Prática emitidos pela Gambling Commission:

“Os licenciados devem fornecer à Comissão, assim que for razoavelmente possível, quaisquer informações, na forma ou maneira que a Comissão possa especificar de tempos em tempos, oriundas de qualquer fonte que eles:

saibam que estão relacionadas ou suspeitem que possam estar relacionadas ao cometimento de uma infração sob a Lei, incluindo uma infração resultante de uma violação de uma condição de licença ou de um dispositivo de código com efeito de condição de licença; suspeitem que possam levar a Comissão a considerar a emissão de uma ordem para anular uma aposta sob a seção 336 da Lei de Apostas de 2005.

Os licenciados que aceitam apostas, ou que facilitam a realização ou aceitação de apostas entre outros, sobre o resultado de corridas de cavalos ou outros eventos esportivos regidos por um dos órgãos governamentais de esportes, incluídos na Parte 3 do Anexo 6 da Lei de Apostas de 2005, devem fornecer ao órgão governamental de esportes, assim que razoavelmente possível, informações relevantes e necessárias, oriundas de qualquer fonte, que eles saibam ou suspeitem que estejam relacionadas a uma violação das regras de apostas estabelecidas por esse órgão governamental.”[4]

(Tradução Livre)

De forma similar, embora ainda não produza efeitos jurídicos em sua plenitude, a Portaria Normativa MF nº 1330/2023 estabelece o seguinte:

“Art. 6º Somente poderá ser autorizada a explorar apostas de quota fixa a pessoa jurídica que atender aos requisitos e condições estabelecidos em regulamento específico, que conterá, no mínimo, as seguintes exigências: (…)

IX- adotar mecanismos de integridade na realização das apostas de quota fixa, conforme regulamento específico;

X- integrar organismos nacionais ou internacionais de monitoramento de integridade esportiva;

XI- implementar política de prevenção à manipulação de resultados, à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa, conforme regulamento específico;”

Assim, o regulador brasileiro se inspirou em sistemas que, apesar de não serem à prova de falhas, podem constituir a primeira camada de proteção regulatória para a integridade esportiva no país. Dessa forma, espera-se que a eventual implementação desses mecanismos produza efeitos iniciais positivos no comportamento dos participantes envolvidos no espectro esportivo.

Contudo, um elemento crucial ainda está ausente do atual arcabouço: a educação.

De acordo com o artigo V do Plano de Ação SBI:

“A educação e outras medidas preventivas desempenham um papel fundamental no combate às ameaças à integridade. Elas são partes essenciais das funções dos órgãos governamentais de esportes (SGBs), associações de jogadores e entidades esportivas, com sua eficácia atrelada a regras claras, sanções justas e proporcionais e a uma boa governança.

Os órgãos governamentais nacionais de esportes e as associações de jogadores se empenharão em:

  • Desenvolver e implementar programas educacionais para elevar a consciência e o conhecimento de atletas, treinadores, oficiais e pessoas em cargos de governança sobre as ameaças que podem corromper a integridade do esporte, tanto interna quanto externamente.
  • Incentivar líderes esportivos e atletas de elite a servirem como modelos em seus esportes e a apoiar os jogadores a terem uma voz ativa no desenvolvimento e na implementação de estratégias de educação e prevenção.
  • Assegurar que seus códigos de conduta, regras de apostas e disposições contratuais estabeleçam bases claras para a aplicação de sanções.
  • Tomar medidas para garantir que todos os participantes estejam cientes de suas responsabilidades, conforme delineado nos códigos de conduta, regras de apostas e disposições contratuais, bem como das implicações de possíveis violações.
  • Estabelecer políticas e capacidades que os habilitem a identificar e responder a questões de manipulação de resultados e corrupção.
  • Ter processos claros para a coleta, troca e investigação de informações, que incluam mecanismos claros de relatório para questões relacionadas ao esporte.
  • Assegurar que arranjos comerciais com operadores de apostas ou outros não criem conflitos de interesse em relação à prevenção e combate à corrupção nas apostas esportivas. Quando existirem arranjos comerciais com operadores de apostas esportivas, o esporte garantirá que estes sejam com operadores devidamente licenciados e que possuam mecanismos adequados de monitoramento e relatório de apostas suspeitas.”[5]

(Tradução Livre)

Portanto, o desenvolvimento de modelos educacionais, em conexão com clubes, federações, órgãos administrativos e operadores de apostas, visando combater a manipulação de resultados, pode gerar resultados preventivos eficazes a longo prazo. Este aspecto é especialmente relevante considerando que o Brasil ainda está em uma fase embrionária ao lidar com questões cruciais deste mercado. Além disso, temos a oportunidade única de observar e aprender com outras jurisdições, cada uma com suas particularidades, sobre como abordaram a proteção da integridade esportiva. A efetiva regulamentação das apostas esportivas pelo Ministério da Fazenda pode representar uma mudança de paradigma no desempenho do país a estas questões, estabelecendo um novo marco no cenário regulatório e incentivando uma maior transparência e responsabilidade em todo o ecossistema.

Não obstante, em virtude da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) nas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 492 e 493, que reconheceu a inexistência de exclusividade da União Federal na administração ou exploração da atividade lotérica, diversos estados estão exercendo sua autonomia e criando suas próprias regras neste setor. Em alguns casos, estas regras parecem mais vantajosas do que as existentes na esfera federal, impulsionando, assim, o interesse dos operadores de apostas. Contudo, sob a ótica da integridade esportiva, a fragmentação de diferentes arcabouços regulatórios estaduais, bem como a regulamentação federal, pode levar a grandes ineficiências, especialmente na coleta, análise e disseminação de dados sobre padrões de apostas suspeitos, e na decisão sobre se e quando compartilhá-las com as autoridades públicas apropriadas.

Diante desses desafios, torna-se relevante a colaboração interestatal, em conjunto com a União Federal, visando adaptar e inovar determinados atos normativos aplicados em mercados maduros de apostas esportivas, como, por exemplo, a construção de uma plataforma nacional para coleta e compartilhamento de informações relacionadas às transações suspeitas de apostas esportivas, envolvendo também as federações desportivas estaduais, que teriam um papel crucial na supervisão de operações potencialmente suspeitas em competições esportivas. Esse organismo mecânico de colaboração federativa encontra inspiração na Convenção do Conselho da Europa sobre a Manipulação de Competições Esportivas, adotada em 2014 e assinada por quase 50 países, que estabelece em seu artigo 13:[6]

1 — Cada Parte identificará uma plataforma nacional abordando a manipulação de competições esportivas. A plataforma nacional deverá, de acordo com a lei doméstica, inter alia:

a) Servir como um centro de informações, coletando e disseminando informações relevantes para a luta contra a manipulação de competições esportivas às organizações e autoridades pertinentes;

b) Coordenar a luta contra a manipulação de competições esportivas;

c) Receber, centralizar e analisar informações sobre apostas irregulares e suspeitas realizadas em competições esportivas que ocorram no território da Parte e, quando apropriado, emitir alertas;

d) Transmitir informações sobre possíveis infrações das leis ou regulamentos esportivos referidos nesta Convenção às autoridades públicas ou a organizações esportivas e/ou operadores de apostas esportivas;

e) Cooperar com todas as organizações e autoridades relevantes em níveis nacional e internacional, incluindo plataformas nacionais de outros Estados.

2 — Cada Parte comunicará ao Secretário-Geral do Conselho da Europa o nome e endereços da plataforma nacional

(Tradução Livre)

Ademais, a evolução tecnológica, como os algoritmos de inteligência artificial (IA), pode emergir como uma ferramenta crucial para análises preditivas e identificação de fraudes. Tais sistemas têm a capacidade de processar vastos volumes de dados em tempo real, abrangendo as tendências do mercado de apostas esportivas para identificar anomalias que indiquem manipulação de resultados ou comportamentos fraudulentos nas apostas. Sendo assim, torna-se imperativo que a evolução normativa se adapte para assegurar a adequação jurídica às novas tecnologias. Neste contexto, é essencial que as entidades desportivas, Estados-membros e o Ministério da Fazenda promovam a colaboração com os desenvolvedores ou provedores dessas tecnologias para garantir harmonia e eficácia, alinhadas aos princípios de integridade esportiva e proteção ao consumidor.

A jornada do Brasil em direção à efetiva regulamentação das apostas esportivas, conforme evidenciada pela Portaria Normativa MF nº 1330/2023, destaca a complexidade e a multiplicidade dos desafios que se apresentam. As comparações entre as normativas brasileiras e as de jurisdições maduras e experientes, como a Grã-Bretanha, sublinham a necessidade de uma abordagem mais unificada e coordenada no enfrentamento dos riscos relacionados à manipulação de resultados e à preservação da integridade esportiva. As experiências obtidas com esses mercados maduros indicam que a fragmentação regulatória pode acarretar ineficiências significativas, ressaltando a urgência de se estabelecer um modelo colaborativo entre diferentes esferas governamentais e entidades esportivas. Além disso, o desenvolvimento de estruturas educacionais e a implementação de uma plataforma nacional para compartilhamento de informações, inspiradas na Convenção do Conselho da Europa sobre a Manipulação de Competições Esportivas, podem ser decisivos na construção de um crescimento orgânico no mercado de apostas esportivas que esteja em harmonia com a integridade esportiva no Brasil.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1]Advogado responsável pelo departamento de Gambling & Crypto do escritório Bichara e Motta Advogados. Graduado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre (LLM) em Direito Desportivo Internacional pelo Instituto de Derecho y Economía (ISDE) em Madri, Espanha. Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD) – Comissão Jovem. Vice-Presidente da Comissão de Esporte e Entretenimento da OAB/RJ – subseção Barra da Tijuca. Membro da Comissão Especial de Direito dos Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento da OAB/RJ. E-mail: [email protected]

[2]Estagiário do departamento de Gambling & Crypto do escritório Bichara e Motta Advogados. Graduando na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Entusiasta do ecossistema de criptoativos e fundador da comunidade jurídica PedroHeitor.ETH. E-mail: [email protected]

[3] https://www.sportsintegrityinitiative.com/wp-content/uploads/2015/09/SBI-Action-Plan.pdf

[4] https://www.gamblingcommission.gov.uk/licensees-and-businesses/lccp/condition/15-1-2-reporting-suspicion-of-offences-etc-betting-licences

[5] https://www.sportsintegrityinitiative.com/wp-content/uploads/2015/09/SBI-Action-Plan.pdf

[6] https://files.diariodarepublica.pt/1s/2015/08/15300/0547705496.pdf

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