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A descriminalização do artigo 50 da Lei de Contravenção Penal: jogada de sorte ou azar?

Por Milton Jordão [1] e Mariana Chamelette [2]

 

O texto do Decreto Lei 9.215/46, por meio do qual se retomou a vigência do tipo penal estabelecido no art. 50, da Lei das Contravenções Penais, demonstra que a proibição dos jogos de azar e das apostas esportivas, no Brasil, adveio estritamente de um anseio estatal de repressão moral, eis que aponta como fundamentos para a criminalização das condutas a “tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro” e o fato de que “a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal”.

Muito embora, para muitos essa seja uma lei que “não pegou” (sim, temos isso no Brasil), aqui cito a inigualável acuidade de Zeca Pagodinho, em entrevista à Veja Rio, ao ser indagado sobre a legalização do jogo do bicho, retrucou sofismando: é ilegal?

Malgrado se saiba que o “jogo do bicho” é praticado abertamente, fazendo parte, desde muito tempo, da nossa cultura popular (como canta Luiz Ayrão, é a segunda maior invenção após o avião), ainda segue no texto lei nominado como infração penal. Forçoso asseverar que as ações policiais que visam coibi-lo são pontuais e raras.

Quiçá, poder-se-ia até sustentar que o princípio da adequação social, cunhado por Welzel, seria incidente na hipótese! Entretanto, voltemos à realidade, vez que esse princípio não foi recepcionado em nosso país.

Pois bem!

Assim como tantas outras contravenções penais, a criminalização da prática de “jogos de azar” e de apostas esportivas é fruto de um Estado que visava exercitar controle moral sobre os seus cidadãos.

Tal espécie de Estado preocupado em policiar os costumes, por meio de um indesejado behaviorismo criminal, ficou (ou deveria ter ficado) no passado. Isso porque o empenho estatal na punição de condutas meramente imorais ou de perigo abstrato vão de encontro ao princípio axiológico de segregação entre Direito e Moral, inerente ao Estado Democrático de Direito.

Ademais disso, criou-se uma realidade paralela e falsa, onde se crê que seja crime a prática/exploração de jogos de azar, enquanto isso, ao se caminhar em qualquer cidade do país se observa bancas de jogo do bicho, muitas delas, até, curiosamente, instaladas ao lado de casas lotéricas.

O Brasil tem perdido inúmeras oportunidades de descriminalizar tal conduta tida como proibida. Aliás, essa delonga em assumir posturas mais sinceras e menos hipócritas, não é novidade, basta ver por quantos anos perdurou a criminalização do adultério!

Com efeito, conforme há muitas décadas já salientava o Prof. Luigi Ferrajoli, um dos maiores pensadores do Direito no século XX, no Estado Democrático de Direito, o Estado está proibido de punir meros vícios e comportamentos. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 impôs o referido limite ao poder punitivo estatal por meio do princípio da lesividade, que demanda que uma conduta penal impinja efetiva lesão a bem jurídico a fim de que seja tipificada. Tal preceito, assim como o princípio da proporcionalidade, são decorrentes da estrita legalidade penal, garantia fundamental insculpida no art. 5º, inciso XXXIX, da Carta Magna.

Ainda assim, não obstante os 33 anos de vigência de nossa Carta Cidadã, o dispositivo que criminaliza os jogos de azar e as apostas esportivas permanece vigente.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal tem em suas mãos a possibilidade de sanear tal situação no âmbito do julgamento do recurso extraordinário nº 966.177, interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, e com relação ao qual se reconheceu a existência de repercussão geral.

Não obstante, a via eleita, melhor, a via pavimentada, não seja a ideal para que se decrete a inconstitucionalidade, para que Poder Judiciário, embora tido e havido como guardião das leis e da Carta Magna, evite de avançar num ativismo que, como sói ocorrer, se revela como perigoso e traz instabilidades para o próprio Estado de Direito.

No julgamento, em exercício de controle de constitucionalidade, a Suprema Corte irá definir se o art. 50 da Lei das Contravenções Penais foi ou não recepcionado pela Carta Magna de 1988.

Com relação ao dispositivo há duas correntes no tocante ao bem jurídico tutelado. A primeira aponta que a contravenção visa tutelar os bons costumes (argumento por si só autodestrutivo). A segunda indica que o bem jurídico tutelado é o patrimônio daquele que decide, enquanto ser humano livre num país democrático, participar de apostas esportivas ou de jogo “em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte”, face à possibilidade de se adquirir compulsão.

Ora, com a devida vênia aos estudiosos, não é papel do direito penal tutelar conduta com relação a qual sequer há vítima, em inegável desproporcional excesso na proibição das condutas a partir da linha argumentativa abstrata de necessidade de proteção criminal à compulsão pela prática de jogos de azar.

Nesse ponto, aliás, há de se destacar que a própria criminologia destaca o risco de a criminalização, nesses casos, incentivar a conduta que objetiva reprimir, em sentido absolutamente contrário ao que se pretende concretizar por meio da proibição.

O Pretório Excelso terá, pois, no julgamento do recurso extraordinário nº 966.177, a oportunidade de reconhecer que Direito Penal, ultima ratio estatal, não pode servir como instrumento de desinfecção social ou de polícia dos ditos bons costumes.

É necessário à Suprema Corte romper barreiras. Espera-se que os eminentes Ministros do Pretório Excelso tenham a compreensão de que a secularização do Direito é caminho necessário e sem volta e que, assim, corrijam os rumos da retrógrada proibição. Já é passada a hora de se olhar para o futuro.

E, resgatando a breguice de Alípio Martins (in O Jogo do Bicho), quem não quer ter a liberdade de poder dizer, sem peias ou amarras…

Hoje eu vou jogar no bicho
Com certeza vou ganhar
Vou fazer uma fezinha
No terno, no grupo e no milhar

……….

[1] Advogado. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Membro da Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD/CBF). Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Nacional. Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SE. Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Ex-presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA. Presidente do STJD do Judô. Ex-procurador do STJD do Futebol. Autor de artigos e obras jurídicas sobre Direito Desportivo.

[2] Advogada pós-graduada em Direito Penal Econômico e em Direitos Fundamentais, especializada em Compliance. Coordenadora regional do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). Procuradora do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol Paulista. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

 

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