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Desdobramentos das aprovações dos planos de recuperação judicial dos clubes de futebol

Por Fernando Silvestre Filho e Eduardo Luz

Durante muitos anos, o procedimento de Recuperação Judicial era concedido exclusivamente aos empresários e sociedades empresárias, respeitando a literalidade do art. 1º da Lei 11.101/05[1].

No entanto, houve uma mudança do entendimento jurisprudencial, anterior mesmo à Lei das SAF, que permitiu que associações civis sem fins lucrativos, mas que exerçam atividade econômica relevante pudessem também ter os benefícios da Recuperação Judicial e Extrajudicial.

A mudança de entendimento foi no sentido de que apesar dessas associações não serem juridicamente constituídas como empresas, elas geram postos de trabalho, recolhem determinados tributos e são relevantes para a economia, de modo que, em caso de que não seja permitida a estas a possibilidade de uma reestruturação com base na Lei 11.101/05, elas iriam “quebrar” causando danos não só na economia local, como também àqueles que dependem direta e indiretamente delas.

Assim, hospitais, universidades e clubes de futebol que se encontram em situação de insolvência, acudiram ao Poder Judiciário para se reorganizar e negociar seu passivo. Aproveitando esta situação, no estado catarinense, o Joinville e a Chapecoense tiveram seu Plano de Recuperação Judicial aprovado[2].

No entanto, apesar de louvável a iniciativa de mudança jurisprudencial por parte do Judiciário, nunca podemos esquecer que a Lei 11.101/05 foi feita para sociedades empresárias. Assim, quando você traz “de qualquer jeito” a literalidade da Lei para aplicar às associações civis, pode acabar abrindo uma série de lacunas, fazendo com que a negociação do Plano torne-se injusta para os credores.

E foi através dessas lacunas que os clubes de futebol estão se aproveitando para ganhar tempo, ludibriar seus credores e reduzir o seu passivo, infringindo o princípio primordial da Recuperação Judicial, que nada mais é do que uma negociação justa entre credores e devedor, na tentativa de soerguer a “empresa”, permitindo a continuação de suas atividades e a equalização do seu passivo.

Para melhor compreensão do tema, a Recuperação Judicial é dividida em quatro classes de credores: Classe I – Credores Trabalhistas; Classe II – Credores com direitos de garantia real; Classe III – Credores Quirografários; Classe IV – Credores de microempresas e empresas de pequeno porte.

Para a aprovação do Plano de Recuperação Judicial, é necessária uma aprovação, em cada uma dessas quatro classes. No entanto, o tipo de maioria necessária em cada uma das classes difere.

Nas classes II e III é necessária uma maioria dupla para aprovação, tanto da maioria “por cabeça” quanto da maioria do valor do crédito dos credores presentes à assembleia. Já para as classes I e IV é necessário apenas o cômputo do voto da maioria dos credores, sem levar em consideração a porcentagem dos créditos.

E qual foi a intenção do legislador ao diferir a maioria necessária para a aprovação? Ora, como se sabe, a maioria das dívidas de sociedades empresariais, como regra geral, está com seus bancos e fornecedores (que se encontram nas classes II e III), então foi determinada uma maioria dupla para evitar abusividades no âmbito da Recuperação. Já nas outras classes, uma pequena parcela do passivo está concentrada, de modo que para flexibilizar a aprovação do Plano, tão somente é necessária a maioria simples.

Veja-se um exemplo: A Lojas Americanas divulgou sua Lista de Credores no final de janeiro, possuindo débito de R$41.231.076.111,35, no qual apenas 0,4% desse valor (R$ 174.326.988,53) encontra-se nas classes I e IV somadas. Ou seja, menos de meio por cento do passivo, de modo que é desnecessário vincular a aprovação do Plano e o futuro da empresa (a rejeição pode implicar em falência) a  uma maioria dupla.

Já no âmbito futebolístico, a situação inverte-se, posto que boa parte do endividamento dos clubes de futebol está com seus ex-atletas, membros da comissão técnica, funcionários etc, com a maioria de seus créditos[3] enquadrados na classe de credores trabalhistas, de modo que seria plenamente justificável exigir a maioria dupla em tal classe, a fim de evitar abusividades, ou seja, há uma nítida inversão da lógica proposta pelo Legislador.

Ocorre que, como já dito, a Lei 11.101/05 foi feita pensando na reestruturação de sociedades empresárias e, ao empurrar sua aplicação “goela abaixo”, na tentativa de soerguimento dos clubes de futebol, ocorre uma antinomia latente e os clubes de futebol estão aproveitando-se dessa lacuna legal para dar novo calote aos credores, agora avalizado pelo Poder Judiciário, afastando, até mesmo, investidores de entrarem na indústria do futebol.

Veja-se o quadro de votação da Assembleia-Geral de credores da Associação Chapecoense de Futebol:

Como podemos ver, de acordo com as exigências legais do Art. 45 da Lei 11.101/05, o Plano de Recuperação Judicial restou aprovado em Assembleia, tendo conseguido a maioria dupla na classe III e a maioria por cabeça na classe I. No entanto, nota-se o absurdo que ocorreu na classe I, na qual 98,57% dos créditos REPROVARAM o Plano, que foi considerado aprovado diante da aplicação da literalidade da lei (que só exige o voto por cabeça na Classe I).

Na Recuperação Judicial do Joinville Esporte Clube, a situação foi análoga, tendo cerca de 90% dos créditos votado pela reprovação, no entanto, o Plano foi aprovado pelo voto por “cabeça”.

Ora, e como é que os clubes fazem para aprovar o Plano dessa maneira? Simples. Concedem pagamento em prazos curtos e sem deságios a credores que possuem valores insignificantes, enquanto que aqueles que possuem dívidas milionárias terão que ser forçados a esperar por até 120 meses (fora já todo o tempo que já vem aguardando) para receber seus valores, com deságios elevadíssimos que alcançam até 85% do valor do crédito.

Ocorre que a Lei 11.101/05 determina que os créditos trabalhistas sejam pagos em até 12 meses, podendo ser estendidos por outros 24 em caso de que o juiz julgue que os clube tem garantia suficiente para cumprir com os pagamentos, além de não poder haver qualquer tipo de deságio, podendo verificar já de antemão, que o Joinville não cumpriu com tal exigência legal, ao apresentar proposta de pagamento em 120 meses aos credores que possuem pelo menos 15 salários mínimos em dívida.

Puxando agora para o lado dos clubes, verifica-se que essa imposição de pagamento em determinado prazo, engessa um pouco todo o procedimento recuperacional, que é basilarmente, um processo negocial entre as partes envolvidas.

Mas ora, essa imposição legal de pagamento é plenamente justificável sob a ótica de grandes empresas, posto que ela é feita na tentativa de proteger o trabalhador da companhia, o qual, na grande maioria das vezes é a relação hipossuficiente e deve ter seu direito protegido, garantindo a estes que receba o seu valor em curto período de tempo.

No entanto, sabemos que não se pode comparar um trabalhador de fábrica que recebe 01 salário mínimo a um atleta que recebe centenas de milhares de reais por mês[4][5], apesar de que, sob a ótica legal, são todos empregados, estando resguardados pela mesma legislação trabalhista.

Daí, quando trazemos uma lei criada e inspirada para o ambiente empresarial e tentamos aplicá-la “na marra” aos clubes de futebol, verifica-se  incongruências, na qual ocorre uma série de ilegalidades apresentadas no Plano ou pior, os clubes usam lacunas da lei para enfiar “goela abaixo” condições de pagamento surreais aos seus principais credores.

O resultado de tudo isso pode até, a priori, parecer benéfico ao clube, que se livrou de um grande passivo, com belíssimas condições de pagamento e matérias midiáticas de “salvação”, no entanto, as consequências a longo prazo é uma chuva de recursos no processo (que causa insegurança jurídica que afasta investidores), além de um plano inviável economicamente que apenas retardará a decretação da falência do clube (que poderia ter utilizado da Recuperação Judicial para de fato reestruturar seus débitos de modo que possibilitasse uma retomada orgânica e sustentável).

Desse modo, uma das principais saídas para o alinhamento e solução deste iminente imbróglio jurídico é uma reforma legal (ou jurisprudencial) na questão da possibilidade de concessão dos benefícios da Recuperação Judicial às associações civis de clubes, a qual deve sim ser permitida, no entanto, com limitações e critérios objetivos diversos aos propostos para as sociedades empresárias, a fim de atender a realidade econômica do futebol, evitando a chancela de planos abusivos, bem como permitindo a liberdade negocial que é vista com sucesso nas recuperações de sociedades empresárias.

Ademais, verifica-se que os operadores envolvidos no procedimento recuperacional necessitam sobretudo entender o cenário econômico do futebol e aplicar institutos contemporâneos para balizar a proporcionalidade e a razoabilidade exigidos aos presentes casos, além da necessidade de um conhecimento técnico da lex sportiva em sintonia com as normas falimentares, no entanto este tema é pauta para outro artigo.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1]Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor

[2] A aprovação dos planos encontra-se pendente de homologação judicial (decisão na qual o juiz verificará se o plano aprovado em assembleia está de acordo com os ditames legais).

[3] Os créditos relativos à direito de imagem estão enquadrados na classe III.

[4] Cumpre ressaltar que por entendimento jurisprudencial, os credores trabalhistas que possuem valor superior a 150 salários mínimos podem ter condições de pagamento similares aos dos credores quirografários.

[5] Lembra-se também que a realidade esmagadora do futebol brasileiro é de atletas que recebe 01 a 02 salários mínimos, além de que o prazo de carreira do jogador é bem curto, dificilmente ultrapassando os 15 anos.

Fernando Silvestre Filho é sócio da EDL Advocacia, graduado pela UFPE e pós-graduado em Direito Societário pelo Insper, é especialista atuante nas áreas de Esporte & Entretenimento e empresarial, buscando sempre agregar valor com soluções inovadoras aos seus clientes.

Eduardo Luz é Investidor anjo, empresário e advogado; Sócio Fundador do escritório EDL Advocacia; MBA em Direito e Finança do Desporto pela Universidade de Lisboa (Portugal); Pós Graduado pela Fundação Dom Cabral em Gestão de Negócios; e Diretor de Relacionamento com mercado da ADVB/SC (Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing de Santa Catarina)

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