O Carnaval é uma das maiores manifestações culturais da humanidade, existindo diversos tipos ao redor do mundo. Ao lado do futebol, o Carnaval brasileiro é um dos principais elementos de identificação do país, sendo o desfile das escolas de samba, consagrado no Rio de Janeiro e atualmente grandioso também em São Paulo e outros centros, o tipo de maior destaque. Assim como o futebol, movimenta a economia com altas cifras e é transmitido em rede nacional, com grande audiência.
Apesar de ter alguns pontos semelhantes, a competição existente entre as escolas de samba pode ser conceituada como esporte? O saudoso intérprete Jamelão, da Estação Primeira de Mangueira, ou a saudosa compositora do Império Serrano Dona Ivone Lara, o saudoso carnavalesco multicampeão pelo Beija-Flor, Joãosinho Trinta, ou ainda o saudoso inventor das paradinhas de bateria, Mestre André, nomes marcados na história da festividade carioca e brasileira, podem ser considerados atletas?
Inicialmente é importante termos em vista o conceito de esporte, algo que não é tão simples. Trabalhando com a noção ampla de esporte, podemos citar o Manifesto sobre o Desporto do Conselho Internacional para a Educação Física e Desporto em colaboração com a Unesco, de 1968, e também a Carta Europeia de Desporto, de 1992. O manifesto dispõe que “toda atividade física com caráter de jogo que adote uma forma de luta consigo mesmo ou com os demais, ou constitua uma confrontação com os elementos naturais”, pode ser considerada esporte. Já a carta da Europa indica que “todo tipo de atividade física que, mediante uma participação, organizada ou de outro tipo, tenha por finalidade a expressão ou a melhora das condições física e psíquica, o desenvolvimento das relações sociais ou a obtenção de resultados em competições de todos os níveis” é desporto.
Entendemos que, por esses conceitos, mesmo extremamente amplos e genéricos, o desfile de escolas de samba já não deveria ser classificado como esporte, entretanto, com certo manejo interpretativo, poderia ser. E assim, os grandes sambistas citados poderiam ser classificados como esportistas. Mas com esses conceitos, praticamente todas as atividades físicas poderiam ser consideradas esporte, inclusive as lúdicas ou recreativas.
Com a necessidade da busca da delimitação de esporte com a noção estrita, em especial para a análise sob o prisma jurídico, apontamos a definição do professor espanhol Gabriel Ferrer¹, que defende ser esporte a “atividade física institucionalizada que supõe uma supérflua confrontação ou competição consigo mesmo ou com um elemento externo”. Assim, para ser esporte, precisa haver atividade física humana competitiva e supérflua, com princípios e regras próprias regulamentadas.
O colunista Gustavo Lopes Pires de Souza², no artigo intitulado “Competição no desfile das escolas de samba: esporte?”³, com a mesma linha de pesquisa, infere:
“Resta analisar se o Desfile das Escolas de Samba enquadra-se no conceito estrito de esporte. Pode-se entender existente a atividade física, pois, necessita da atividade intelectual ao elaborarem os temas (sambas-enredos), organizarem as alas, ritmos, danças, coordenando as infinitas possibilidades de movimentos corporais combinados aos elementos de ballet e dança teatral, realizados fluentemente em harmonia com o tema (samba-enredo). Desenvolve-se harmonia, graça e movimentos criativos traduzidos em expressões pessoais através da combinação musical e técnica, que transmitem satisfação estética aos que a assistem. A atividade intelectual existe em esportes como o xadrez e o bridge (jogo de cartas) e os movimentos corporais na ginástica rítmica desportiva. (…) Ante o exposto, percebe-se a possibilidade do enquadramento do desfile das ´Escolas de Samba´ no conceito de desporto, eis que as competidoras precisam ter graça, leveza, beleza e técnicas precisas em seus movimentos, alegorias e adereços para demonstrar harmonia e entrosamento com o samba-enredo, seus componentes e adereços em um ambiente de expressão corporal contextualizada inclusive pelos sentimentos transmitidos através do corpo, das alegorias e das fantasias e pelas capacidades psicomotoras nos âmbitos físico, artístico e expressivo. Por essa reunião de característica pode-se definir os ´Desfiles das Escolas de Samba´ como esporte-arte.”
Em que pese o brilhantismo da fundamentação do ilustre autor, com a devida vênia, divergimos na análise já do primeiro e principal elemento, segundo a doutrina espanhola citada, para o enquadramento do desfile de escola de samba como esporte, qual seja, a atividade física competitiva. Isso porque os desfiles são avaliados principalmente por nove quesitos independentes, podendo ser agrupados em três categorias: dança, plástica e música.
Os quesitos da categoria dança são evolução, mestre-sala e porta-bandeira e comissão de frente. Nesses quesitos, principalmente evolução, que é a análise da movimentação do cortejo humano e alegórico da escola, poderíamos ressaltar como elemento preponderante de baliza para o julgamento a “atividade física competitiva”. Na categoria música, com samba-enredo, bateria e harmonia, ainda que em harmonia se avalie o entrosamento do canto dos componentes com o ritmo produzido pela bateria, há a avaliação da canção e do som de suporte para o desfile, ou seja, a análise ocorre apenas entre os produtos da atividade física humana. Por fim, ainda que esses pontos sejam superados, na categoria visual estão enredo, o tema do desfile, e alegoria e fantasia, quesitos que claramente não são balizados pela atividade física competitiva. Realmente as escolas estão em uma competição, sendo que a soma da pontuação de todos os quesitos indica a campeã; porém, a atividade física competitiva não é elemento preponderante da competição, nem toda competição é esportiva.
Portanto, Jamelão, Dona Ivone Lara, Joãosinho Trinta e Mestre André não foram atletas, mas foram, são e sempre serão sambistas imortais!
E sobre a classificação de desfile de escola de samba como esporte…
“Agora sei
Desfilei sob aplausos da ilusão
E hoje tenho esse samba de amor, por comissão
Findo o carnaval
Nas cinzas pude perceber
Na apuração perdi você”⁴
……….
¹ FERRER, Gabriel Real. Derecho Público del Deporte. Madrid: Civitas, 1991.
² Colunista do Lei em Campo todo domingo.
³ Disponível em: http://www.justificando.com/2015/02/19/competicao-no-desfile-das-escolas-de-samba-esporte/
⁴ Canção Enredo do Meu Samba de Ivone Lara da Costa e Jorge Cruz .