A continuar o cotejo em matéria trabalhista entre Lei Pelé (Lei n. 9.615/98) e Lei Geral do Esporte-LGE (Lei n. 14.597/23), conforme o afirmado na coluna da semana passada, para saber qual das duas deve o operador do Direito eleger na aplicação prática do cotidiano, aborda-se mais dois dispositivos semelhantes das referidas Leis que podem causar dúvida.
O tema da vez é sobre as despesas com lesões (acidente de trabalho) do atleta e treinador profissional. A redação do art. 45, § 2o, da Lei Pelé assim descreve: “A entidade de prática desportiva é responsável pelas despesas médico-hospitalares e de medicamentos necessários ao restabelecimento do atleta enquanto a seguradora não fizer o pagamento da indenização a que se refere o § 1o deste artigo”.
Por outro lado, o art. 84, § 1o, da LGE, assim dispõe: “A organização esportiva contratante é responsável pelas despesas médico-hospitalares, fisioterapêuticas e de medicamentos necessárias ao restabelecimento do atleta ou do treinador enquanto a seguradora não fizer o pagamento da indenização a que se refere este artigo, independentemente do pagamento de salário”.
Diante dessas diferentes redações normativas, tratando-se de matéria trabalhista desportiva, qual delas deve predominar na regulamentação da realidade prática entre jogador, treinador profissional e clube contratante?
Em primeira análise, ressalve-se que, a atual previsão contida no art. 84, § 1o, da LGE é mais abrangente e benéfica do que a existente no art. 45, § 2o, da Lei Pelé, uma vez que aquela abarca todo o seu arquétipo de construir um modelo de atletas profissionais que podem deter vínculos trabalhistas subordinados ou de prestadores de serviço por via cível, e, inclui não apenas os jogadores, mas também os treinadores.
Significa, por outras palavras, à luz da LGE, que as despesas médico-hospitalares, com medicamentos, fisioterapia e manutenção dos salários devem ser custeados pelos clubes empregadores que realizam o profissionalismo desportivo, seja por intermédio do contrato especial de trabalho esportivo, seja através de um contrato de prestação de serviço de natureza civil, nos termos dos seus próprios arts. 70, 71, 82.
O referido art. 45, § 2o, da Lei Pelé apenas assegura as despesas por conta do clube se este detiver o contrato especial de trabalho desportivo com o atleta empregado, afastando os treinadores em geral e os jogadores que possuem liame de natureza civil. Por isso mesmo, o seguro de vida e acidentes pessoais destes atletas, sem enlaces empregatícios, estão resguardados em outro dispositivo – art. 82-B da mesma Lei Pelé.
Nessa esfera, percebe-se facilmente sobre as despesas com lesões (acidentes de trabalho desportivo), que a normatividade da LGE é mais favorável aos atletas e treinadores profissionais (com ou sem vínculo empregatício) em comparação com a Lei Pelé, pois aquela acrescenta como despesas do empregador a garantia da quitação dos salários e os custos com fisioterapia, enquanto o jogador estiver lesionado e não receber a indenização do seguro em pauta.
Ante tal divergência normativa, a solução recomendada deve ser a mesma manifestada na coluna da semana passada. Contudo, nesta análise, a eleição de prevalência do texto normativo coincide com os critérios clássicos de antinomia de normas ao se utilizar do metaprincípio juslaboral da prevalecência da norma mais favorável em benefício do trabalhador desportivo (stricto ou lato sensu).
Portanto, na concretização da aplicação do princípio da norma mais favorável diante deste problema em foco, independe-se das vertentes teóricas de sua funcionalidade, tais como: teoria da acumulação ou atomista, teoria do conglobamento, teoria do conglobamento mitigado (orgânico ou por instituto). Isto porque a Lei Pelé e a LGE normatizam temas complexos em somente um dispositivo, segundo é o caso destas normas contrapositivas.
Nessa matriz, entre as duas normas apresentadas acima, ao contrário do exposto nas anotações da coluna passada, predomina o critério da Lei posterior que revoga a anterior por regular-se inteiramente a mesma matéria (art. 2°, § 1°, do Decreto-Lei n. 4.657/42, Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro-LINDB).
Mencionado critério, muito conhecido pelo brocardo jurídico Lex Posterior Derogat Legi Priori não incide no campo trabalhista com a mesma força que recai nos demais certames jurídicos, mas somente quando a Lei posterior é mais favorável do que a anterior.
Assinale-se, neste caso particular não se vislumbra a incidência do critério da Lex Specialis Derogat Legi Generali, uma vez que ambas as Leis regulamentam, especialmente, o mesmo exato conteúdo: Desporto em Geral – Segmento de Trabalho Desportivo – Lesões (Acidente de Trabalho) dos atletas e treinadores.
Em síntese, está-se diante da ocasião em que a Lei posterior (LGE) deve predominar sobre a Lei Pelé em questão de despesas com lesões (acidente de trabalho) dos atletas e treinadores, pois o critério tradicional da Lei posterior afasta a anterior coincide com o critério da maleável norma mais favorável que prevalece sobre a norma menos favorável ao trabalhador desportivo (jogadores e técnicos).
Nessa esteira, o operador do Direito deve interpretar que o art. 84, § 1o, da LGE, prevaleça sobre o art. 45, § 2o, da Lei Pelé, a garantir que em favor do trabalhador desportivo (atleta e treinador) sejam devidos a manutenção dos salários e dos tratamentos fisioterapêuticos enquanto não houver recebimento da indenização do seguro de vida e acidentes pessoais.
Por demais, após esgotado um (1) ano de recuperação se o atleta e o treinador acidentado (lesionado) não tiver recuperado, todas as depesas médico-hospitalares, fisioterapêuticas, com medicamentos e manutenção dos salários voltam a ser do clube contratante, uma vez que a indenização do seguro só cobre o referido ano e cabe à organização desportiva proporcionar as condições mínimas para o exercício profissional e condições de trabalho dignas (art. 84, II e IV, da LGE).
Por fim, mesmo que o trabalhador desportivo (atleta e treinador) celebre contrato com cláusula que preveja a desoneração da organização esportiva profissional sobre despesas com lesões (acidente de trabalho), pode-se alegar que o caráter de adesão, de hipossuficiência, de dependência econômica ou de acesso ao labor não o permite negociar, afigurando-se um vício de consentimento que comprime a autonomia, livre manifestação de vontade, requerendo uma reparação adicional em sua remuneração contratual.
Crédito imagem: Getty Images
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