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Direito Esportivo, um apátrida que não busca território

Estou há semanas gastando fosfato e bits para explicar que a autonomia esportiva advém de dois fenômenos: o direito do indivíduo – autônomo – à prática esportiva e a preservação do equilíbrio entre melhor performance atlética e incerteza do resultado. Já trouxe até Kant e Hegel para me auxiliarem na tarefa. E não é que me deparo com uma ótima entrevista do jornalista e escritor Sérgio Rodrigues a Uirá Machado, editor do caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo, que arremata o assunto de modo simples e sublime?! Trata-se de um podcast¹ em que o entrevistado fala de seu imperdível romance sobre futebol, “O Drible”. E nela me surge aquela inveja sobre a capacidade de análise e síntese:

“Todo esporte é uma narrativa pronta. Ele é muito fechado, muito autossuficiente. Ele já cria as suas histórias, ele já dá os seus arremates, ele cria os seus heróis […]
Esse é como fosse um mundo que prescinde da ficção. Ele prescinde da invenção. Inclusive ele rejeita a invenção com muita frequência…”.

Nesse trecho curto da entrevista, Sérgio Rodrigues nos ensina que o esporte “prescinde da ficção”, “rejeita a invenção”. Mesmo que esteja falando da impossibilidade de se inventar personagens tão “sui generis” como Garrincha e Pelé, cabe aqui a reflexão acerca da preservação da incerteza do resultado: o esporte repele a invenção, não aceita aquilo que é estranho ao que se busca na prova ou competição. E, para isso, cria para si uma “narrativa pronta”, e “é muito fechado, muito autossuficiente”.

Bingo! Que maestria para dizer que, para repelir a invenção, aquilo que não lhe é comum, o esporte cria uma linguagem própria. E que vai se tornando algo como que fechado, autossuficiente.

Penso que o meu leitor aqui da coluna já percebeu que a preservação do resultado limpo, da incerteza do resultado, da igualdade entre os atletas em disputa, demanda autonomia de quem define os limites dos movimentos corporais, da definição das regras de jogo. E que essa autonomia se estende para as pessoas e entidades que gerem o esporte. Autonomia desde o praticante que está fora do esporte de rendimento, passando pelos atletas que disputam competições de alto nível, e que, como se numa assembleia de autonomias – na visão kantiana e de Jean-Loup –, irradiam essa autarquização para as entidades dirigentes.

Essa necessidade de produção, reprodução e preservação da linguagem própria da modalidade vai se tornando tão complexa que requer que o seu sistema normativo e de gestão se destaque do círculo maior em que estava inscrito, provavelmente o do sistema educativo/cultural. A autossuficiência e a necessidade de diferenciação criam um subsistema próprio do esporte, que denominamos “Lex Sportiva” [favor não confundir com lei esportiva, estamos aqui falando de um sistema].

Sociólogos e juristas se debruçam sobre esse fenômeno em que sistemas mais gerais vão criando outros subsistemas. Foi o caso de Niklas Luhmann e sua “Teoria dos Sistemas”. Em um arriscado, mas necessário, resumo, digo que esse autor entende que a produção de linguagem própria dentro de um sistema mais geral, como o da política, vai tornando uma de suas áreas tão complexa, tão diferenciada, que não lhe dá outra opção senão se tornar autônoma, criando seu próprio sistema. É o que ocorreu com o direito, por exemplo.

E isso já passou com o esporte bastante tempo atrás, praticamente há 100 anos.

Devemos entender, assim, que a diferenciação sistêmica no estilo luhmaniano não apenas deu autonomia ao sistema esportivo, como também o desvinculou do sistema jurídico-governamental estatal.

Isso mesmo! A organização esportiva autônoma, como já vimos em colunas anteriores, nasce no seio de Estados nacionais, mas vai se tornando global. A necessidade de pessoas de diferentes nacionalidades disputarem em igualdade de condições o mesmo esporte foi demandando linguagem própria universal, uma “partitura” esportiva. Em consequência, as associações de atletas de determinada cidade se filiavam a uma entidade regional, que por sua vez se juntava a uma associação nacional da modalidade. Por fim, as associações nacionais buscavam criar uma entidade internacional do respectivo esporte. E esta passa a ser a garante mundial da linguagem universal de competição a ser preservada.

Esse fenômeno luhmaniano de novo tipo, assim como os já antiquíssimos sistemas da Igreja Católica – “Direito Canônico” – e das relações empresariais – “Lex Mercatoria”, se desgarra das amarras governamentais e de direito interno de cada país. Cria sua própria organização globalizada. Transnacional. Temos também na Lex Sportiva um sistema de autorregulação, autogoverno e justiça própria (Corte Arbitral do Esporte, no cume) em nada vinculada a este ou aquele país².

Gunther Teubner, um dos maiores especialistas em Teoria dos Sistemas na atualidade, assim fala sobre esse fenômeno que abarca o esporte:

“Também na área da proteção ambiental é possível reconhecer tendências na direção de uma globalização do direito em relativa independência das instituições estatais. E mesmo no universo do esporte discute-se a emergência de uma ‘lex sportiva internationalis'”.³

Há uma notória quebra de narrativa iluminista aqui. Perceberam? O direito no Estado moderno não tem como um de seus atributos exercer jurisdição e projetar suas leis em determinado território controlado pelo respectivo Estado? Mesmo o Direito Internacional – com a exceção da teoria do “jus cogens internacional” – reconhece essa constante. Temos na Lex Sportiva um caso de desterritorialização do direito.

Giacomo Marramao, filósofo italiano contemporâneo, diz que o direito se desterritorializa para de algum modo reterritorializar-se⁴. Isso não significa necessariamente voltar ao território nacional, como ocorre com o Direito Internacional. A noção de território, como já disseram Deleuze e Guattari, refoge ao conceito de espaço estatal.
Em outras palavras, a “Lex Sportiva”, desterritorializada no sentido estatal, constitui-se como um novo território, próprio, global, sem fronteiras terrestres, sem vínculo de dependência ou sujeição com Estados.

Entendido assim, espero, que as relações entre eficiência, incerteza do resultado e igualdade no esporte demandam autonomia, que essa autonomia gera organização desterritorializada e que se reterritorializa de modo atípico, transnacional, enquanto sistema de linguagem técnica e jurídica, falta uma parte ainda dos fundamentos do Direito Esportivo: a noção de sujeito. Será o tema da última coluna deste ano. Até lá.

……….
¹ Disponível em: www.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/06/futebol-e-tao-fantastico-que-quase-sempre-supera-a-ficcao-diz-escritor.shtml.
² Não esqueço aqui da relevância do Tribunal Federal Suíço no controle de legalidade das decisões da CAS.
³ TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global sobre a Emergência de um Pluralismo Transnacional. Revista de Ciências Sociais e Humanas, v. 14, n. 33. Piracicaba. 2003.
⁴ MARRAMAO, G. O Mundo e o Ocidente Hoje — O problema de uma esfera pública global. Tradução de Flaviane Magalhães Barros de palestra ministrada durante o Seminário “Direito, política e tempo na era global”, — PUC-MG, 2007-B. mimeo.

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