A Cúpula do Milênio foi a conferência mundial de 2000 organizada pelas Nações Unidas que reuniu chefes de Estado para estabelecer as metas de desenvolvimento a serem cumpridas por todos os países até o ano de 2015, conhecidas por Objetivos do Milênio. Depois, em 2005, novamente os mandatários dos países membros da ONU se reuniram na sua sede para outra cúpula intitulada “Seguimento dado ao documento final da Cimeira do Milénio”. Dela resultou a Resolução da Assembleia Geral A/60/L.1, denominada “Implementação integrada e coordenada e seguimento dos documentos finais das principais conferências e cimeiras das Nações Unidas nos domínios económico, social e conexos”.
Dentre os pontos mais importantes desse ato internacional, de observância obrigatória aos membros da ONU, está o reconhecimento da necessidade de se viver em um ambiente de cooperação internacional baseado no multilateralismo e sob o primado do Direito Internacional.
Veja o que diz um dos pontos mais importantes da Resolução:
7. Acreditamos que hoje, mais do que nunca, vivemos num mundo global e interdependente. Nenhum Estado pode existir numa situação de total isolamento. Reconhecemos que a segurança colectiva depende de uma cooperação eficaz na luta contra ameaças transnacionais, em conformidade com o direito internacional.
Ao mesmo tempo, os chefes de Estado reafirmaram seu compromisso na construção e manutenção da paz e do respeito aos Direitos Humanos.
Chamo a atenção para o fato de que, mais uma vez, uma importante norma internacional se volta à importância do esporte como meio eficaz na busca não somente da consecução dos Objetivos do Milênio, como também, principalmente, para a valorização da cultura de paz e a observância dos Direitos Humanos. Dessa forma, a Resolução de 2005 traz textualmente o esporte como uma das mais valorizadas medidas a serem promovidas pelos países membros das Nações Unidas:
145. Salientamos que o desporto pode ajudar a promover a paz e o desenvolvimento e contribuir para um clima de tolerância e compreensão, e incentivamos o debate de propostas conducentes a um plano de acção sobre desporto e desenvolvimento na Assembleia Geral.
Com o entendimento claro de que o texto da Resolução está redigido em português de Portugal, por isso a utilização do termo “desporto” em vez de “esporte”, o que sobressai nesse ponto 145 da norma da ONU é (1) a importância do esporte na promoção da paz e do desenvolvimento e (2) sua relevância na promoção dos direitos humanos, por meio da construção de um clima de tolerância e compreensão.
Repiso que chefes de Estado tomaram o esporte nessa norma de aplicação obrigatória como meio eficaz para a busca da paz, o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos.
Recordo, ainda que, naquela outra resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas mais recente e da qual tratamos nos dois últimos artigos, justamente a que reconheceu oficialmente a autonomia esportiva (A/69/L.5), há a citação de diversas outras normas internacionais que tratam diretamente ou de modo correlato do esporte, seja enquanto meio para a promoção da paz, seja como instrumento fundamental para a disseminação dos valores consentâneos ao respeito à dignidade da pessoa humana, aos direitos humanos. E ela traz aquela passagem muito importante: “Toda a forma de discriminação é incompatível com o pertencimento ao movimento olímpico”.
Sabemos que o Princípio da Especificidade Esportiva nos remete a sempre discutir não somente a necessidade de respeito à autonomia esportiva, como também se haveria limites à fruição desse direito de os membros da Lex Sportiva se portarem de modo autárquico. Essas resoluções das Nações Unidas estariam limitando a autonomia esportiva ao vinculá-la ao respeito aos direitos humanos? A prevalência do Princípio da Especificidade Esportiva no nosso meio seria uma forma de mitigar a inafastabilidade da observância do respeito à dignidade da pessoa humana?
A resposta é a seguinte: nem a ONU prevê limitações ao exercício da autonomia esportiva nem a especificidade do esporte é incompatível com o estrito respeito à supremacia dos direitos humanos.
A ONU, na verdade, compreende que o esporte é um local privilegiado para a disseminação, a prática e a educação para os direitos humanos. Já o Princípio da Especificidade Esportiva não tem nenhuma contradição com o respeito à dignidade da pessoa humana. Ao contrário, não há igualdade esportiva, paridade de armas, onde impera o desrespeito aos direitos humanos. A chamada Justiça Esportiva não pode “ponderar” entre a aplicação da especificidade do esporte ou o respeito aos direitos humanos.
No esporte, a dignidade da pessoa humana precede qualquer valor vinculado à competição, ao rendimento esportivo. Desse modo, o esporte competitivo deve se amoldar sempre à plena vigência da prevalência dos direitos humanos.