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Doping russo, parte 2

Um documentário exibido na televisão alemã provocou a maior crise da história do esporte. Medalhas confiscadas. Ídolos desmoralizados. Uma potência desmascarada. A corajosa delação de Yulia Stepanova (assunto da semana passada nesta seção) e do marido, o treinador de atletismo Vitaly Stepanova, estremeceu o mundo do esporte e desencadeou uma avalanche de processos judiciais. Se fôssemos pegar caso a caso, o Juri-história trataria do tema por anos. Por isso, o fundamental aqui é entender como os fatos narrados por Yulia provocaram uma investigação que trouxe consequências para o esporte e também para o mundo jurídico esportivo.

O documentário mostrou um esquema estatal de doping. O Estado russo produzindo campeões de maneira ilícita. A partir dele, dezenas de pessoas passaram a falar. O ex-diretor do laboratório antidoping de Moscou, Grigory Rodchenkov, exilado nos Estados Unidos por motivos de segurança, revelou ao New York Times que os Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi 2014 foram manchados por um escândalo de doping em grande escala. Rodchenkov acusou inclusive o serviço secreto russo de ter trocado amostras suspeitas e afirmou que ao menos 15 medalhistas russos nesses Jogos de Inverno eram dopados.

Trabalhei na cobertura do evento de Sochi, e muito já se falava de um esquema do governo para encobrir doping dos atletas a fim de transformar a Rússia na grande vencedora dos Jogos e alavancar a imagem pública de Vladimir Putin. Mas ninguém imaginava que, em fevereiro de 2015, um ano depois, o castelo de conquistas estaria completamente destruído.

O canal alemão ARD e o jornal britânico The Sunday Times citaram, um outro documentário, alguns meses depois da delação de Yulia, uma lista de atletas suspeitos em cerca de 5 mil de 12 mil amostras colhidas em medalhistas das últimas edições dos Mundiais e das Olimpíadas. Com as acusações brotando por todos os lados, COI, Federação Internacional de Atletismo, federações internacionais e WADA passaram a agir.

Em agosto de 2015, a agência antidoping, WADA, divulgou as primeiras conclusões da investigação, com duras acusações de “doping organizado” na Rússia, com envolvimento dos mais altos escalões do Estado, inclusive do serviço secreto. Os casos de doping “não poderiam ter existido” sem o consentimento do governo, dizia a comissão, que concluiu pedindo uma medida drástica: a suspensão do atletismo russo de todas as competições internacionais, inclusive os Jogos do Rio.

Em Sochi, o presidente russo, Vladimir Putin, tentou colocar panos quentes, garantindo total colaboração das autoridades do país e pedindo uma investigação interna. E reforçou pedido para que punições fossem individuais, não coletivas.

Mesmo assim, em novembro de 2015, o Conselho da Federação Internacional de Atletismo suspendeu de maneira provisória a Federação Russa de Atletismo. A possibilidade de a potência olímpica ficar de fora dos Jogos do Rio 2016 era real. Em março, a suspensão foi mantida.

Em julho, às vésperas dos Jogos do Rio, o relatório McLaren, divulgado a pedido da WADA, foi duro com a Rússia. Ele denunciou um “sistema de doping de Estado” que atingiu 30 esportes na Rússia, de 2011 a 2015, principalmente nos Jogos de Sochi e no Mundial de Atletismo de Moscou em 2013.

Não só atletismo. COI em apuros. Tribunal Arbitral do Esporte analisando, dias antes da Olimpíada, dezenas de casos de atletas que tentavam conseguir na Justiça o direito de competir. Em início de julho de 2016, eram 68 atletas russos com pedidos no TAS para derrubar a suspensão da IAAF.

Assustada e apertada pelos prazos, a comissão executiva do COI anunciou que iria “explorar todas as opções jurídicas”, entre exclusão coletiva de todos os esportistas russos e “direito à justiça individual”. Concretamente, o COI explicou que “a admissão de cada atleta russo terá de ser decidida pela federação internacional do seu esporte, com base na análise individual dos exames antidoping aos quais foi submetido em nível internacional”. O COI esperava pelo TAS.

No final de julho, o Tribunal Arbitral do Esporte rejeitou recurso contra a suspensão da Federação Internacional de Atletismo. A Rússia não iria mesmo competir nos Jogos do Rio 2016 no atletismo. Por decisão do Comitê Olímpico Internacional, temendo mais processos judiciais, o Comitê Olímpico Russo (ROC) não foi suspenso. A entidade deixou por conta das federações internacionais de cada modalidade a responsabilidade de avaliar a participação dos atletas individualmente, desde que atendendo critérios rigorosos.

Entre as atletas que tentavam competir no Rio via TAS estava Yelena Isinbayeva. A bicampeã olímpica do salto com vara feminino e um dos maiores nomes do mundo no atletismo não fora flagrada em doping. Mesmo assim, o Comitê Olímpico determinou que todos os atletas russos, de qualquer esporte, teriam de comprovar sua elegibilidade dentro de um “processo rígido”. A IAAF também determinou que, mesmo com o atleta conseguindo o direito de competir, não permitiria o uso da bandeira russa nos jogos na competição de atletismo. Se houvesse exceção a um russo, ele teria de competir com bandeira neutra. Yelena disse que não aceitaria e disparou: “Obrigada a todos por enterrar o atletismo. Tudo isso é meramente político”. A atleta reforçou o discurso do governo russo.

Ainda hoje há discussão jurídica no TAS em função da delação de Yulia e do marido. Medalhas saem e voltam para as mãos de atletas russos. O esquema estatal de doping foi desmascarado e provocou vítimas em todos os lados. Tirou a lisura das conquistas, feriu o espírito olímpico e provocou uma avalanche de processos. A história do maior escândalo de doping no esporte ainda está longe do fim.

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