Por Pitágoras Dytz
Já ouviste falar de Aleksiéi Ivânovitch? Com quase todas as chances ao meu lado e quase nenhuma contra, apostaria algum dinheiro contigo que agora lê estas linhas que a resposta será negativa.
Apesar de suas qualidades pessoais, de sua erudição – o que lhe garante um posto de preceptor em uma casa de uma família de posses, Aleksiéi Ivânovitch é um homem comum, tão ordinário quanto tantos outros daqueles nascidos da mesma pena. Talvez tu não te lembres dele porque, diferentemente de outros de seus ‘irmãos’, nunca matou ninguém com um machado, tal como o fez Rodion Raskólnikov, tampouco se envolveu no complô que redundou num dos parricídios mais famosos da História, o que assolou a família Karamázov. Ah, parece-me que esses patronímicos tocam uma corda aí dentro. Já vejo que reconheceste a prole dostoievskiana!
Aleksiéi Ivânovich não matou, nem mandou matar, nem soube de morte alguma, sequer cumpriu pena na Sibéria, nem se viu entre humilhados e ofendidos. Aleksiéi apenas jogou. E jogou inveteradamente até seu último florim. Ele não é um assassino, nem um falsário; Aleksiéi é apenas um jogador. Aliás, ele é o narrador-protagonista de Igrok, traduzida para o português como Um jogador, Apontamentos de um homem moço, novela curta ambientada na fictícia Roletenburgo, na Alemanha, estância hidromineral para a qual afluem pessoas de diversos países, russos, poloneses, franceses, ingleses, e diversas condições sociais, de príncipes a lacaios, muitos em busca de tratamento para as doenças do corpo, uns tantos apenas de passagem, mas quase todos – ao menos os personagens da história que ele narra – sofrendo de uma mesma doença, de origem senão congênita, ao menos adquirida assim que se adentra os salões de jogo onde, como o nome da cidade já deixa antever, a roleta impera soberana: a ludopatia.
É em torno da roleta que fortunas – de raiz ou construídas a partir de empréstimos extorsivos ou de compromissos pessoais insolvíveis – são ganhas num lance de sorte, mas, com frequência maior ainda, num mesmo lance de sorte, só que alheio, são perdidas, vidas são arruinadas e desgraças são construídas. Os lances, apostas e números se sucedem, um depois do outro, num contínuo da roda da sorte e do azar composto da duplicidade do par e ímpar, do vermelho e do preto e da promissora solidão do zero. O dinheiro muda de mãos com rapidez. Começando “a experimentar timidamente o jogo, apostando duas ou três moedas de cada vez”, Aleksiéi chega a ganhar muito – como ele mesmo diz, “em cinco minutos, tive nas mãos perto de quatrocentos friedrichsdors”, para, no final, perder “completamente tudo, e em bem pouco tempo”, afastando-se “da mesa como se tivesse levado uma pancada na cabeça”. Mas duas coisas não mudam: a banca sempre vence, sempre fica com o seu, e a sorte dos jogadores, sejam eles quem forem. Mesmo aqueles que, tentando apreender a regras inexoráveis da sorte, munidos de papel e lápis, anotam números, calculam probabilidades e se aplicam ao jogo de forma técnica. Em suas anotações, podem apreender algo, mas deixam de fora o essencial: de que todos perdem. Todos, menos a banca. Sendo jogadores, estão fadados a sofrer a dor e o desespero da derrota sem que ninguém lhes estenda a mão, exceto para recolher o ganho da rodada ou para emprestar dinheiro para que a compulsão pelo jogo possa ser extravasada em mais um giro da roleta, só mais um, quem sabe o redentor!
A partir de uma breve leitura do texto da MP 1.182, de 2023, vê-se que o legislador, aparentemente, também não conhece nem Aleksiéi, nem os efeitos deletérios, pessoais e sociais, que a adicção pelo jogo desencadeia; ou, se os conhece, a única mão que decidiu estender ao jogador foi a do crupiê que recolhe o dinheiro empenhado nas apostas, desta feita sob a forma de tributos, pois, exceto sob a forma de uma tíbia exortação para que aqueles que vierem a explorar o mercado de apostas por quota fixa adotem medidas de conscientização quanto à ludopatia e seus efeitos, ao editar a MP, o legislador parece ter preferido guardar suas fichas.
Apesar de delegar à regulamentação infralegal a tarefa de lidar com a intrincada questão da compulsão pelo jogo – que eu arriscaria ser um dos motivos que jogam Aleksiéi Ivânovich no ostracismo, ao editar a MP 1.182 – ao invés de atuar com mais assertividade e imperatividade, optou-se por apostar na consciência das empresas que explorarão esse mercado. Conta com a expectativa de que, por não ser de seu interesse matar a galinha dos ovos de ouro – leia-se: comprometer o apostador, as casas de apostas adotarão providências visando impedir a manifestação da doença. Mas como? Como lidarão com os efeitos, especialmente aqueles que advêm da negativa de acesso ao jogo? Não será ingenuidade crer que empresas que atuam expressa e estritamente conforme as regras – e falta de princípios mais elevados – do Capitalismo, que visam meramente o maior lucro possível e tendem ao monopólio, que trabalham com algoritmos não apenas desenhados para que nunca percam, mas também indiferentes a quem está do outro lado, sejam as responsáveis pela prevenção de uma doença cujos efeitos sobre o cérebro humano são os mesmos de outras substâncias que causam dependência, como o álcool e outras drogas[1]? Não será o mesmo que esperar que os traficantes que controlam a Cracolândia fiquem responsáveis por alertar os usuários a respeito dos efeitos da droga que vendem, ou, ainda mais, pelo seu bem-estar em caso de falta da dose? Não será o mesmo que colocar a raposa a cuidar do galinheiro, com a diferença de que, a cada galinha morta, algumas novas serão imediatamente postas nesse galinheiro?
Não é demais lembrar que a busca pelo lucro pode ser, e geralmente é, indiferente aos princípios e valores intrínsecos ao Esporte, assim como não se pode olvidar que é o ludopata consumado, ou o que tem propensão à ludopatia, o alvo das casas de apostas quando ofertam seus produtos. A tensão inerente ao jogo experimentada pelo torcedor dá lugar a outro tipo de tensão quando esse se torna apostador, ainda mais um patológico, transformando a diversão em sofrimento.
Se objetará que as apostas já acontecem e que, até hoje, não há um regramento ou um sistema que proteja, ainda que timidamente, os apostadores contra a sanha daqueles que exploram o jogo. Mas se era para deixar como estava ou para fazer algo que tene à mera figuração, qual a efetiva necessidade da intervenção legislativa? Que se deixasse esse mercado, e seus consumidores, ao seu alvedrio, confiando de que sua mão invisível fosse acolhedora e não rapace.
Nesse sentido, não há como fugir da inexorável conclusão de que o objetivo da MP 1.182, de 2023, não era criar um sistema de proteção à integridade do jogo, das competições em que se apoia e ao apostador, mas sim o de garantir mais uma fonte de receitas para fechar as contas. Rescende à ironia, e há aí um paradoxo, que, com uma mão, seja lançado um programa para tirar as pessoas do atoleiro das dívidas e com a outra se empurre o cidadão para o jogo, deixando-o quase sem nenhum amparo diante da avidez das casas de apostas. Não há um evento esportivo, ou mesmo uma notícia lida on line, que não esteja acompanhada da exaustiva e exasperante publicidade dessas casas. Pensando bem, talvez veja aí uma forma de ganho que permita aos eventuais ‘sortudos’ fecharem as contas no fim do mês.
Vivendo da mão para a boca, seria compreensível a preferência por se associar à banca – que nunca perde – ao invés de colocar-se ao lado de quem nele põe suas fichas a cada quatro anos, o eleitor, que sempre perde. Talvez o faça confiando que a indefinição do pronome ‘um’, capaz de impessoalizar a relação, seja caução mais do que suficiente para a expiação da consciência política de quem parece pensar mais como Aliona Ivanovna – a usurária, vítima de Raskólnikov – do que se solidarizar com Aleksiéi e, se colocando em seu lugar, mergulhar nesse mundo do vício da jogatina para, a partir daí, formular uma política pública mais completa em termos de integridade, tanto no que se refere ao apostador quanto no que tange ao próprio sistema de apostas. Há muito mais coisas em jogo aí do que simplesmente permitir a exploração de apostas e lucrar com a taxação daí decorrente. Esquecem que o jogo cega, encanta ao ponto de tirar o apostador da sua linha do tempo e imergi-lo numa racionalidade que desconhece completamente e que nenhuma anotação ou sistema matemático é capaz de apreender de forma a evitar a perda, e cabe também ao Estado protegê-lo desse poder encantatório preferencialmente antes de baterem às portas do sistema público de saúde buscando auxílio para a ressaca do feitiço.
E a medida provisória não peca apenas por se esquecer do elo mais fraco da corrente, a carne a ser moída no triturador das apostas, apenas rebatizada, aqui, de apostador. Frente a tantos escândalos de manipulação de apostas, faltou, por exemplo, pensar no tratamento a ser dado ao chamado wristleblower, questão que se apresentou à discussão estatal ainda no esteio dos Grandes Eventos Esportivos, lá, no já longínquo – e parece esquecido em muitos aspectos – 2013, e que, smj, a legislação brasileira não atende devidamente. Deixa a desejar também, por exemplo, no que concerne ao estabelecimento de uma estrutura mais robusta em termos de acompanhamento [em tempo real] do volume e do direcionamento de apostas – quem sabe com a criação de uma agência nacional de integridade esportiva, ou algo que o valha, indene a pressões política como estará um órgão cujo titular é demissível ad nutum pelo Ministro –, assim como em previsões que permitam à regulamentação estabelecer travas ao jogo desenfreado – como a limitação do valor máximo a ser apostado, assim como havia na distante Rolentenburgo dostoeivskiana, e há em muitos lugares, ou o tempo total diário ou semanal permitido, ou os meios elegíveis para pagamento, com a vedação ao uso de cartões de crédito, por exemplo. Da forma como está, será uma tarefa difícil regulamentá-la, sendo certo que, mantida em seus termos originais, protegerá apenas o ganho das casas de aposta e, mais certo ainda, do governo. Sem normas com verdadeiros enforcements que condicionem o comportamento das casas de apostas, corremos o risco de ver a saga dos bingos ressurgir.
Bom, até agora, as pessoas à frente desse processo podiam alegar que não só não conheciam Aleksiéi Ivânovitch, como também não sabiam que o jogo pode ser deletério, e não apenas para o apostador, mas também para a família, vítima do opróbio das dívidas e de sua violência; que o diga o próprio Dostoiévski, ele mesmo um jogador patológico. Depois dessas linhas, essa desculpa, “Eu não sabia”, já não vale, nem isenta ninguém da devida responsabilidade! E creio que não seria exigir muito que os responsáveis dedicassem um pouco de seu tempo para, ao menos, passar os olhos pela história do compulsivo jogador, pois, diferente de outras novelas do autor russo, Um jogador tem pouco mais de duzentas páginas. Uma espiadela já ajudaria senão a fazer uma proposta legislativa mais preocupada com o lado humano da relação, pelo menos algo com uma venalidade menos escancarada. Sequer é preciso combinar com os russos, basta conhecer um pouco do que contam! Se não tiverem tempo para isso, sugiro se inteirarem da história de Henry Chinaski e de sua inveterada relação com o mundo de apostas em cavalos; em termos de vícios, Bukowski é uma manancial infindo.
Num país varado pela violência, que se expressa tanto em praça pública quanto dentro de casa, que encontra motivos numa briga de trânsito, numa discussão numa fila de padaria, na inconformidade com o fim de um relacionamento, na escolha da cor da camisa ou do candidato, na cor da pele, do credo que se professa, tudo a demonstrar ser a expressão de uma pulsão que, como nos ensina Norbert Elias, precisa encontrar uma válvula de escape para extravasar, adicionar o jogo da forma como a MP 1.182, de 2023, o faz – permitindo, por exemplo, a constituição de dívidas para sustentar o vício, é não apenas uma perda de oportunidade de corrigir os rumos da decisão política que, anos atrás, deu nascimento às apostas por quota fixa, mas, principalmente, coloca ainda mais água, escaldante, nessa fervura! Vamos ver até quando a válvula aguenta. Não é preciso ser ‘profeta’, nem fazer parte de um esquema, para saber que, cedo ou tarde, a coisa estourará e que, ainda que poupe essa gente que aí está a estabelecer as ‘regras do jogo’, quando acontecer, certamente respingará em muita gente. Quer apostar?
Crédito imagem: Getty Images
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Pitágoras Dytz
Escritor, Advogado da União, ex-Consultor Jurídico junto ao Ministério do Esporte
@pitagoras_dytz
[1] https://drauziovarella.uol.com.br/entrevistas-2/jogadores-patologicos-entrevista/.