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Dutee Chand e Caster Semenya: o direito de ser o que se é – Parte 1

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
(Trecho do poema “Incenso Fosse Música”, de Paulo Leminski)

Os versos escritos por Leminski poderiam soar como um coro de mulheres que enfrentam a resistência de federações esportivas em aceitá-las da forma que são. A indiana Dutee Chand e a sul-africana Caster Semenya compartilham dessa batalha há vários anos. Mulheres que lutam para serem reconhecidas como tal.

Chand e Semenya apresentam uma taxa de produção endógena de hormônios andrógenos, como a testosterona, acima do que é considerada como “normal” para mulheres, condição conhecida como hiperandrogenismo feminino.

Atletas com essa condição passaram e ainda passam por diversas humilhações e imposições durante a carreira esportiva, dispostas em regulamentos esportivos que buscam “normalizar” a condição hormonal das atletas, sempre sob a justificativa de um suposto comprometimento da igualdade da competição.

Dutee Chand nasceu em 1996 na vila rural de Gopalpur, localizada no distrito de Odisha, na Índia, país de pouquíssima tradição no atletismo, ofuscado junto com outros esportes pela paixão pelo críquete.

De família com poucos recursos e sofrendo com a falta de energia elétrica e de água encanada na vila, Chand viu no esporte que requer pouca estrutura e de regras simples uma oportunidade para se divertir. Logo a diversão passou a dar frutos. Aos 18 anos, foi campeã nacional nos 100 e nos 200 metros.

Com o sucesso, vieram também os primeiros exames. Chand acreditava que seria submetida a testes antidopagem, mas suas amostras de sangue e urina foram encaminhadas para análise cromossômica para “verificação de sexo”. Chand relata que também foi submetida a testes físicos.

Após o episódio, Chand foi suspensa previamente pela Federação Indiana de Atletismo (AFI) de participar de eventos esportivos, sob o fundamento de que a atleta apresentava elevados níveis de testosterona. Aqui é interessante regressarmos um pouco.

Os testes de “verificação de sexo” são um triste capítulo da história do esporte. A partir da década de 1930, o destacado desempenho esportivo e a compleição física de algumas atletas passaram a chamar a atenção, pois rompiam com o estereótipo sexista da mulher frágil e incapaz de obter resultados expressivos. Disseminou-se a retórica de que homens pudessem estar competindo na categoria feminina¹.

A instituição formal e sistemática dos primeiros testes de “verificação de sexo” ocorreu na década de 1960. No Campeonato Europeu de Atletismo em 1966 e nos Jogos Pan-americanos em 1967, todas as atletas foram submetidas a inspeções visuais em procedimentos que ficaram conhecidos como “paredões de nudismo”².

O caráter extremamente invasivo e humilhante desses testes ficou ainda mais em evidência nos Jogos da Commonweatlh disputados na Jamaica em 1966, quando as atletas foram submetidas a exames ginecológicos manuais.

As atletas obviamente reagiram, e o Comitê Olímpico Internacional acabou por extinguir os testes visuais ainda na década de 1960, adotando o teste de cromatina conhecido como Teste de Barr, o qual envolvia uma análise celular para identificar se a pessoa tinha formação cromossômica XX ou XY.

No entanto, atletas com síndromes que atingiam a formação cromossômica (síndromes de Klinefelter, Turner ou insensibilidade androgênica) desafiavam as bases do Teste de Barr. Organizações de direitos humanos também denunciavam o caráter discriminatório desses testes.

Os Testes de Barr foram substituídos pelo teste genético conhecido como SRY (sex-determining region), que focava a análise em uma região específica do cromossomo Y. Este último teste perdurou até 1999, quando o COI cedeu às pressões e extinguiu de forma oficial a sua política de testes dessa natureza.

De fato, quando olhamos para trás, percebemos que, embora as entidades esportivas ainda imponham critérios de participação em nome de uma competição supostamente justa (level playing field), as pressões exercidas por atletas e organizações de direitos humanos têm promovido diálogos que ocasionam certa abertura da Lex Sportiva aos direitos humanos³.

No fundo, a questão gira em torno também de duas questões centrais. A primeira diz respeito à preservação de uma lógica sexista que ainda enxerga o esporte feminino dentro de padrões de feminilidade. Inúmeros são os exemplos dessa lógica, desde a exigência de uniformes “sensuais” para as atletas, até o caso do campeonato oficial de futebol feminino ocorrido em São Paulo em 2001, que vedava a participação de atletas com cabelos raspados.

A outra questão emerge a partir da falsa noção – ainda enraizada – de que os atletas se enfileiram em condições idênticas. O multicampeão Michael Phelps, por exemplo, apresenta características genéticas que inegavelmente lhe conferem vantagens. Phelps conta com envergadura muito superior àquela esperada em indivíduos com seu porte físico, além de mãos e pés enormes⁴.

Voltando ao caso de Chand. Na época, vigorava o Regulamento sobre Hiperandrogenismo da Federação Internacional de Atletismo (IAAF), que exigia que as atletas tivessem níveis de testosterona menores ou iguais a 10 nmoL/L. Caso a atleta estivesse fora dessa margem, ela deveria se submeter a tratamentos médicos para reduzir os seus níveis hormonais.

A atleta indiana se recusou a passar pelos procedimentos médicos impostos pela IAAF, argumentando que se tratava de uma condição de seu organismo e que o regulamento era nitidamente discriminatório. Chand optou então por recorrer ao Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) a fim de anular o Regulamento da IAAF e a decisão da AFI, de modo a assegurar, assim, a sua participação em eventos esportivos.

Em sua argumentação, Chand sustentou que (i) o Regulamento sobre Hiperandrogenismo violaria as disposições antidiscriminação contidas na Carta Olímpica, na Carta da IAAF e nas normas internacionais de direitos humanos; (ii) a exigência de limite hormonal apenas para as mulheres representava discriminação em razão de gênero; (iii) não haveria relação causal entre o aumento da produção endógena de testosterona e a melhoria do desempenho esportivo de mulheres; (iv) não haveria estudos científicos que relacionavam diretamente o desempenho esportivo com a concentração de testosterona em mulheres com hiperandrogenismo; (v) outros fatores são determinantes para a diferença de desempenho entre homens e mulheres; (vi) os níveis de testosterona podem variar de acordo com fatores externos.

Chand argumentou ainda que a legislação de Mônaco – sede da IAAF – incorporava a Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres.

A IAAF, por sua vez, sustentou que (i) a testosterona é determinante significativo do desempenho esportivo; (ii) os efeitos psicológicos da testosterona endógena e exógena são idênticos; (iii) é possível identificar um nível “normal” de testosterona em mulheres; (iv) o regulamento não questiona a feminilidade das atletas e protege a sua saúde.

O Painel Arbitral do TAS considerou que o regulamento era, sim, discriminatório à luz da Carta Olímpica, da Carta da IAAF e das leis de Mônaco. Para os árbitros, não havia evidências sobre o grau de vantagem esportiva que essas atletas com hiperandrogenismo tinham sobre as demais⁵.

O Painel entendeu que a IAAF não conseguiu demonstrar que o Regulamento sobre Hiperandrogenismo era um mecanismo necessário e proporcional para garantir a igualdade na competição esportiva feminina. O TAS, então, suspendeu o regulamento por dois anos, para que a IAAF apresentasse novas evidências e o reformulasse.

Com a decisão do TAS, a atleta indiana que corria descalça foi capaz de disputar os Jogos Olímpicos Rio/2016. Como nos versos de Leminski, o direito de querer ser exatamente aquilo que se é levou Chand além. E também possibilitou que outras mulheres fossem além: Caster Semenya não apenas participou, como também foi campeã olímpica no Rio de Janeiro.

Em março de 2018, a IAAF publicou as suas novas regras em um documento intitulado “Regulamento de Elegibilidade para a Classificação Feminina (Atletas com Diferenças de Desenvolvimento Sexual)”. Dessa vez, foi Semenya que entrou em cena para questionar esse novo regulamento no TAS e continuar a batalha iniciada por Chand.

Na próxima coluna, veremos como foi o desenrolar da história e a atual situação dessas mulheres. Discutiremos também como o direito internacional dos direitos humanos enxerga a questão e como as organizações de direitos humanos podem ter papel central nessa luta.

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¹ HEGGIE, Vanessa. HEGGIE, Vanessa. Testing Sex and Gender in Sports: reinventing, reimagining and reconstructing histories. Endeavour Journal, v. 34, n. 4, p. 157-163, 2010.
² GANDERT, Daniel et al. The Intersection of Women´s Olympic Sport and Intersex Athletes: A Long and Winding Road. Indiana Law Review, v. 46, n. 2, p. 387-423.
³ Para ver mais sobre as pressões e os diálogos ocorridos entre a Lex Sportiva e os direitos humanos no livro deste autor: “Lex Sportiva e Direitos Humanos: entrelaçamentos transconstitucionais e aprendizados recíprocos”. Disponível em: https://www.editoradplacido.com.br/lex-sportiva-e-direitos-humanos-entrelacamentos-transconstitucionais-e-aprendizados-reciprocos-2-edicao
⁴ http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/science/newsid_7568000/7568608.stm
⁵ TAS. Sentença n. 2014/A/3759, de 24 de julho de 2015.
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Foto: The Indian Express

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