Seria mais fácil para vocês se eu não fosse tão rápida?
Seria mais simples se eu parasse de vencer?
Vocês ficariam mais confortáveis se eu fosse menos orgulhosa?
Vocês gostariam que eu não tivesse trabalhado tão duro?
Ou apenas não corresse?
Ou escolhido outro esporte?
(campanha publicitária da empresa Nike com a atleta Caster Semenya)
Conforme discutimos na coluna passada, a atleta indiana Dutee Chand conseguiu em 2015 importante vitória no Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), o qual suspendeu o Regulamento sobre Hiperandrogenismo da Federação Internacional de Atletismo (IAAF)¹ por dois anos, possibilitando que Chand e outra grande atleta, Caster Semenya, pudessem disputar a Olimpíada Rio/2016. Veremos agora como se deu o desenrolar dessa história.
Após o fim do prazo de suspensão, a IAAF publicou novas regras em um documento intitulado “Regulamento de Elegibilidade para a Classificação Feminina (Atletas com Diferenças de Desenvolvimento Sexual)”. O novo regulamento impõe que qualquer atleta mulher que apresente níveis de testosterona iguais ou maiores do que 5 nmol/L e deseje participar dos chamados “Eventos Restritos Internacionais” deve se submeter aos seguintes critérios: (i) ser legalmente reconhecida como mulher ou como intersex; (ii) reduzir os seus níveis de testosterona para menos de 5 nmol/L por um período contínuo de pelo menos seis meses; (iii) manter os níveis de testosterona abaixo de 5 nmol/L continuamente.
O novo regulamento permite que mulheres que não desejam reduzir seus níveis de testosterona possam participar na categoria feminina de quaisquer eventos não internacionais e nos eventos internacionais ditos “não restritos”. Possibilita também que essas mulheres possam disputar na categoria masculina e em eventual categoria intersex.
No entanto, antes da data prevista para que o novo regulamento entrasse em vigor (1/11/2018), a sul-africana Caster Semenya recorreu ao TAS para questionar a regra da IAAF. Diante disso, a IAAF anunciou o adiamento da sua aplicação até que o Tribunal decida sobre a questão, o que deve ocorrer já nas próximas semanas.
Embora a demanda de Semenya no TAS seja recente, a sua luta é de longa data. Semenya é considerada o principal “alvo” dos regulamentos sobre mulheres com hiperandrogenismo impostos pela Federação Internacional de Atletismo (IAAF). Isso decorre, sobretudo, dos seus expressivos resultados esportivos.
De fato, a atleta sul-africana tem se destacado no cenário internacional desde que venceu a prova dos 800 m no campeonato mundial júnior em 2008, à época com apenas 18 anos. De lá para cá, foi medalhista de prata na Olimpíada de Londres/2012 (posteriormente convertida em ouro, após a divulgação do doping da atleta russa vencedora) e conquistou o ouro na Rio/2016.
Caster Semenya nasceu em Ga-Masehlonga, África do Sul, em 1991, e, assim como Dutee Chand, cresceu em uma vila pobre e rural. O seu início esportivo se deu no futebol, mas logo migrou para o atletismo, e, após o título mundial júnior, a garota da pequena vila se mudou para a capital sul-africana para estudar na Universidade de Pretória e intensificar sua rotina de treinos.
A jovem atleta disputava campeonatos mundo afora e começava a ganhar notoriedade, e a IAAF submeteu Semenya a exames que detectaram “níveis elevados de testosterona”. Veio então a decisão de suspender a sua participação em competições oficiais. Na ocasião, Semenya declarou: “Eu tenho sido submetida a um escrutínio injustificado e invasivo dos detalhes mais íntimos e privados do meu ser”. Semenya ficou impossibilitada de competir durante os seis meses seguintes.
Além de lhe ser negada a sua própria identidade, Semenya se tornou o foco da imprensa esportiva mundial, e a decisão da IAAF parece ter dado abertura para críticas das mais agressivas advindas de várias das atletas que competiam com Semenya. De promessa esportiva, a sul-africana passou a ser encarada com desprezo por outras atletas e como um problema a ser solucionado pela IAAF.
Diante dessa situação, em 2011 a IAAF publicou o seu Regulamento sobre Hiperandrogenismo, impondo tratamentos hormonais a essas mulheres – aquele questionado por Dutee Chand no TAS –, e em 2018 esse novo regulamento foi desafiado por Semenya na mesma corte.
Ao menos, Semenya não está sozinha nessa luta. Na África do Sul, Semenya teve o apoio das autoridades governamentais. O ministro do Esporte local é voz recorrente na defesa de Semenya perante os meios de comunicação, sobretudo nesses últimos dias que antecedem ao julgamento pela corte arbitral esportiva.
Caster também continuou sendo orgulho para os sul-africanos. Em 2016, a campanha intitulada #handsoffcaster (algo como “deixem Caster em paz”) tomou grandes proporções nas redes sociais na África do Sul.
A Relatoria Especial da ONU para o Direito à Saúde conclamou as organizações esportivas a implantarem políticas de acordo com as normas de direitos humanos e a não introduzirem políticas que forcem mulheres a passarem por procedimentos médicos desnecessários e irreversíveis para participar de competições femininas².
No campo do direito internacional dos direitos humanos, os Princípios de Yogyakarta estabelecem que os Estados devem garantir que todos os indivíduos possam participar de esportes sem discriminação em razão de orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou características sexuais³.
A organização Human Rights Watch publicou, em julho do ano passado, uma carta aberta ao presidente da IAAF sustentando que essa nova regulamentação é discriminatória e promove violações de direitos humanos internacionalmente protegidos, incluindo o direito à privacidade, à saúde, à integridade do corpo, à dignidade e à não discriminação⁴.
A batalha de Semenya também mobilizou atletas renomados. Cerca de 60 atletas assinaram um documento endereçado à IAAF no qual argumentam que o regulamento viola o princípio de que o esporte é um direito humano, disposto na Carta Olímpica. Dentre as atletas signatárias do documento, estão Dutee Chand e a lenda do tênis Billie Jean King⁵. LeBron James esteve presente em uma competição de Semenya e também declarou apoio à sua luta.
A evolução da política de verificação de sexo no universo esportivo representa um aprendizado adquirido pelas entidades esportivas frente a anos de pressões e provocações de diversas origens. Esses aprendizados decorrem não só de decisões judiciais tomadas em outras ordens jurídicas, mas também de pressões internas de atletas e instituições esportiva e ainda de pressões externas de organizações de direitos humanos⁶.
As relações transversais travadas entre a Lex Sportiva, ordem jurídica transnacional do esporte, e os direitos humanos são marcadas por essas provocações e irritações externas, e é fundamental que o universo esportivo permaneça aberto aos aprendizados decorrentes dessas relações.
O que a luta de Semenya também revela é a dificuldade de lidarmos com a diferença. O exercício de alteridade deve fazer parte do cotidiano esportivo, e casos como os de Semenya e Chand oferecem oportunidades para que as entidades esportivas se posicionem na vanguarda em matérias como a garantia de direitos a minorias e a promoção da inclusão.
As carreiras de Semenya e de várias outras mulheres nessa mesma situação estão em jogo, e a iminente decisão do TAS será mais uma batalha nessa longa luta pelo direito de ser o que se é.
Acompanharemos de perto.
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¹ Regulamento disponível em https://www.iaaf.org/about-iaaf/documents/rules-regulations#collapseregulations
² Special Rapporteur on the Right of Everyone to the Enjoyment of the Highest Attainable Standard of Physical and Mental Health. 2016. Disponível em: http://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.aspx?si=A/HRC/32/33
³ Princípios de Yogyakarta disponíveis em http://yogyakartaprinciples.org/principles-en/yp10/
⁴ Carta aberta da Human Rights Watch: https://www.hrw.org/sites/default/files/supporting_resources/hrw_letter_iaaf_femaleclassification_20180724.pdf
⁵ Carta disponível em: https://www.athleteally.org/actions/iaaf/
⁶ Sobre e as relações e os aprendizados adquiridos pela Lex Sportiva: “Lex Sportiva e Direitos Humanos: entrelaçamentos transconstitucionais e aprendizados recíprocos”. Disponível em: https://www.editoradplacido.com.br/lex-sportiva-e-direitos-humanos-entrelacamentos-transconstitucionais-e-aprendizados-reciprocos-2-edicao