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E se a emoção sair de campo?

Por Marcelo Azevedo

Os tempos são outros, sabemos, mas algumas mudanças na ambiência do jogo de futebol, comportamentais por vezes, ou regulatórias em outras, tem me causado um preocupante incômodo pelas esquisitices. E, mais que esquisitas, elas tem me chamado a atenção em função dos efeitos que podem trazer no longo prazo para a essência de um esporte que necessita visceralmente da emoção para conectar seus mais diversos atores: clubes, mídia, dirigentes, técnicos, patrocinadores, entidades, árbitros, e, especialmente, atletas e torcedores.

Então vamos logo a um exemplo? Iniciemos falando sobre as mudanças comportamentais.

Não é de hoje que observamos o aumento significativo de torcedores que abrem mão de viver a emoção do instante máximo de uma partida de futebol para poder gerar o que vem sendo chamado de conteúdo compartilhável. Sim, eu sei que alguns dirão que isso não é um fenômeno exclusivo das novas arenas, evidente que não. É sabido que vivemos uma era em que pessoas registram num restaurante belas imagens de pratos que sequer pediram ou pedirão, ou pasmem, sabem ou saberão seu sabor, emulam sorrisos que pouco representam qualquer emoção natural e são capazes de produzir fotos e vídeos de locais em que jamais estiveram. Ou ainda pior, em que nunca desejarão estar de verdade.

A provocação que trago é como o sistema em torno do futebol observa isso e que ideia faz para onde estamos caminhando com tudo isso. Diante de cenários assim, a frase que me vem logo à mente é: “Se você não sabe onde quer ir, qualquer caminho serve.” Pois é esta a sensação que me dá quando me dou conta do que estamos vivenciando.

Vou tentar contextualizar mais um pouco, esta semana recebi um vídeo de um evento, num determinado ambiente festivo uma banda tocava uma música conhecida, o cantor usava todos os seus recursos vocais para prender a atenção da galera que se divertia, muita gente conversando, outros dançando, bebendo, atitudes perfeitamente normais, fazendo o que todos fazem numa típica balada em qualquer canto deste país. Até que a pessoa que registrava a cena vira a câmera e nos mostra que aquilo tudo acontecia enquanto uma partida das oitavas de final da Copa do Brasil se desenvolvia a metros dali, exatamente naquele mesmo local, ou para ser mais claro, especificamente ali naquele estádio de futebol.

Sim, jogadores em campo, bola indo de um lado para o outro, dribles, trombadas, erros de juiz e passes para gol, nada programado como é da natureza do jogo. A chance do abraço no vizinho desconhecido, do olhar emocionado para seu pai ou seu filho, a percepção de um gol antes mesmo da bola entrar. Sim, quem conhece a atmosfera de um jogo sabe como isso é possível. Mas só se você estiver vivendo aquilo ali na mesma sintonia, no mesmo compasso, porque você não sente aquilo sozinho, uma torcida, as duas, um estádio sente no mesmo instante.

De imediato fiquei perplexo em ver como aquelas pessoas permitiam que a imprevisibilidade característica do futebol atuasse para que elas perdessem algum destes momentos mágicos de uma partida. Intimamente falava para mim mesmo, olha lá, é seu time que está para fazer um gol. Ou tomar, vai saber, porque é nesta velocidade que o jogo acontece e se desenvolve em campo.

Então me perguntei se não queriam ver prioritariamente o jogo, o que faziam lá?

Possivelmente reunir experiências, aproveitar a possibilidade de curtir uma balada num local inusitado, talvez estivessem ali apenas acompanhando amigos, enfim, o jogo em si poderia não ser a sua razão determinante. De pronto, tento entender o que pensaram os que planejaram a ação, afinal sou um leitor que acompanha a construção de uma indústria que busca estabelecer uma dinâmica que reúne esportes e entretenimento num único produto. Isso tem nome, sportainment, gente seríssima pesquisa e divulga material sobre este tema.

O meu receio é que na ânsia de buscar alternativas ao jogo que enriqueçam a experiência do seu entorno, numa tentativa compreensível de atrair e renovar o público torcedor, o sistema não esteja sendo seduzido pela armadilha de percorrer trilhas arriscadas, ou ainda mais graves, sem caminho de volta. A necessidade de geração de novas e recorrentes receitas não pode ser imperiosa a ponto de deslocar o jogo para uma zona de periferia de interesse. Sobre este arranjo imperfeito que pode disfarçar danos irreversíveis, minha avó dizia algo que o resume bem: “a fome é uma péssima conselheira”.

No momento, aquela balada ainda era uma atividade complementar ao jogo, mas dado que já se vira de costas na hora de um pênalti decisivo de seu time e já se curte um som enquanto os jogadores estão em campo, não estranhe se em algum momento o jogo passar a ser a atividade periférica deste combo de experiências. E é aí, amigos, que reside o risco desta jornada. Imaginemos a seguinte situação: diante de públicos com interesses tão diversos, pessoas cedo ou tarde irão reclamar que o jogo está atrapalhando a platéia de curtir a balada. Não vai demorar até que alguém ponha uma foto em que revelará ao mundo a sua dúvida entre acompanhar a banda que irá cantar o hit do momento ou o pênalti em campo? Os dois eventos ali, lado a lado. Para qual lado do estádio este público vai olhar? Qual emoção ele desejará sentir? Parece surreal? Era possível imaginar a 10 anos atrás que alguém daria as costas para seu time a fim de produzir um conteúdo? As pessoas não apenas fazem isso, como ainda distribuem o material em que seu próprio time é o alvo da piada, num processo de autoflagelação em que se ridicularizam proposital e espontaneamente. E isso não é mais um caso isolado.

E o que dizer sobre determinadas mudanças regulatórias que, a meu ver, reforçam dramaticamente este fenômeno. Aqui na América do Sul, a entidade que comanda o futebol achou por bem criar proibições que esvaziam o espetáculo ao colocar para escanteio um dos maiores patrimônios deste esporte por aqui: a festa das torcidas. Aqui temos os incríveis recebimentos, as festas das bandeiras, as ruas de fogo e os instrumentos musicais. Aqui temos a tradição do alambrado, os papéis picados e os rolos de papel que criam uma cena inesquecível. O interessante neste ponto é que todas as comunicações feitas pela entidade para vender a imagem do jogo, sempre trazem essas festas das torcidas, ou seja, é quase uma negação consciente de quem somos, mas não sem antes se aproveitar do que ela provoca no mais perfeito sentido simbólico e imagético.

E qual o sentido dela agir assim? O que se diz é que seria para coibir ações de violência entre torcedores. O que parece é que para se trocar a água suja que está na banheira, optaram por jogar fora também o bebê.

A mim, vai ficando cada vez mais claro que a indústria precisa aprimorar a relação que existe com os torcedores, num processo que exige que todos atuem em colaboração, atletas, clubes, ligas e federações. E isso já deixou de ser apenas postagens em redes sociais.

Já tem gente fazendo isso, e fazendo bem.

Um exemplo recente foi a iniciativa do Manchester City que desenvolveu uma tecnologia para através do cachecol, elemento historicamente simbólico que todo torcedor carrega em apoio a seu time, se conectar com o seu torcedor, passando a coletar dados sobre suas emoções enquanto eles assistem ao jogo do clube.

Suas emoções, meus caros.

A ideia é que esta troca ofereça ao clube inúmeras possibilidades de desenvolvimento de novas e, cada vez mais, personalizadas experiências para seus torcedores, diretamente relacionadas a emoção que cada um deles sente ao assistir uma partida do City.

Emoções ao ver o jogo sendo jogado.

Percebem a diferença conceitual?

Observem em que posição está o jogo neste ambiente de inovação. A tecnologia está a seu serviço, é uma proposta que aproxima o torcedor do jogo, não o faz dar as costas.

O que eles estão fazendo é trazer a emoção dos olhos, do coração, da pele dos seus torcedores, ainda mais para dentro do jogo. Tudo o que eles não querem, é que esta emoção saia de campo.

Jamais!

Crédito imagem: Natasha Pisarenko/AP

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Marcelo Azevedo é formado em Administração de Empresas com MBA em Gestão de Negócios. Publicitário por adoção, atua há mais de 30 anos liderando áreas de gestão e finanças. É convicto da força que o ecossistema do futebol pode produzir ao seu entorno.  Torcedor raiz, é um amante do jogo bem jogado, da boa disputa, mas gostar, gostar mesmo, ele gosta é do Botafogo, até mais do que do futebol. É sócio do Futebol S/A

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