Por Fernando Cezar
Ultimamente, quando o objetivo é se referir ao conjunto de atores que fazem parte da indústria do futebol, a noção de ecossistema é utilizada pela comunidade que se interessa ao tema e que compartilha ideias através de publicações em sites, podcasts e redes sociais. Porém este é um conceito muito mais abrangente que imaginamos e nos oferece diversos elementos que pode nos ajudar em reflexões relacionadas a uma possível evolução do futebol brasileiro. Ele nos dá a oportunidade de analisar estrategicamente o ambiente no qual uma organização está inserida. Nas próximas linhas tento compartilhar parte do meu entendimento sobre evolução da análise estratégica, a origem do conceito de ecossistema e como o mesmo foi parar no mundo da ciência de gestão, antes de apresentar minhas reflexões sobre a sua ligação com os desafios atuais do futebol.
A estratégia que conhecemos é relativamente nova e porteriana. Ou seja, uma noção difundida em grande parte por Michael Porter há pouco mais de 50 anos. Sendo que pode ser dividida em dois períodos: um primeiro chamado exatamente de Porteriano (1980 – 2000) e um segundo de Pós-Porteriano (desde 1995). Resumidamente, significa que passamos de um período em que o foco da estratégia era manter a vantagem competitiva dentro de um setor ou indústria, para um período em que o desafio se volta para novas formas de criação de valor sem perder a coerência estratégica da organização, onde a análise ultrapassa as fronteiras do setor. Isto é, uma visão mais complexa que observa os parceiros que desempenham um papel essencial na determinação do valor criado, mas que não possuem necessariamente vínculos diretos com a organização. Isto não significa que a visão de Porter deva ser descartada, jamais! O ponto aqui é a expansão para uma perspectiva mais ampla quando se trata de análise estratégica.
E onde se encaixa a noção de ecossistema no meio de tudo isso?
É exatamente a possibilidade de buscar entender o ambiente em que diferentes atores vivem e interagem em comunidade que torna a noção de ecossistema interessante. Ela foi definida pela primeira vez em 1935 pelo botânico Arthur George Tansley com o objetivo de caracterizar o sistema que inclui os seres vivos, o ambiente em que vivem, suas características e suas inter-relações. Anos mais tarde, mais precisamente quase sessenta anos depois, o cientista de gestão James Moore o introduziu ao mundo dos negócios. O artigo Predators and prey: a new ecology of competition, publicado em 1993 pela Harvard Business Review, descreveu uma comunidade de empresas e indivíduos produzindo bens e serviços, adaptando-se ao meio onde vivem através de uma estratégia comum que agrega valor entre eles, como um ecossistema de negócios. O que foi ampliado, em 1996, com a publicação de um livro chamado The Death of Competition: leadership & strategy in the age of business ecosystems.
Graças à estas primeiras publicações o conceito se desenvolveu amplamente, sendo discutido até hoje tanto no mundo acadêmico como no ambiente empresarial. Porém, por ser considerada uma noção que continua em construção dentro da gestão, discussões sobre a pertinência da analogia entre a biologia e a gestão ainda são recorrentes. Apesar da resistência inicial do mundo acadêmico, autores importantes da área consideram o conceito pertinente e extremamente promissor para entender certos mecanismos dentro da gestão estratégica.
E o que o seu entendimento pode trazer de benefício para o futebol?
Além de ajudar a perceber o futebol através de um prisma muito mais amplo, possibilitando o entendimento das múltiplas conexões que os clubes estabelecem com uma infinidade de atores, o conceito de ecossistema de negócios possui diferentes perspectivas teóricas. Abordagens que o enxergam como plataformas tecnológicas, plataformas de inovação aberta, estruturas de alinhamento centradas em uma proposição de valor conjunta, estruturas onde as organizações competem e cooperam ao mesmo tempo (coopetição), entre outras.
Todas estas diferentes abordagens se articulam em torno de mecanismos, tais como: criação e captura de valor, governança, regulamentação, colaboração, liderança, gestão de recursos e complexidade. Mecanismos que fazem parte da dinâmica do ecossistema do futebol profissional. Além disso, o mesmo possui características ambientais e costuma evoluir em função de transformações econômicas, sociais, competitivas, tecnológicas, políticas e regulamentares. E uma visão ecossistêmica pode ajudar esta comunidade, principalmente os dirigentes, a evoluírem suas organizações.
Destaco a perspectiva defendida pelo pesquisador norte americano Ron Adner. Autor que, em 2012, publicou o livro chamado The Wide Lens: A New Strategy for Innovation abordando o tema pelo prisma estrutural do ecossistema. Abordagem que pode ser utilizada como ferramenta de análise da realidade atual do futebol profissional brasileiro, uma vez que o autor sugere que existe um equilíbrio entre o benefício do alinhamento coletivo e a captura de valor individual das organizações que fazem parte da estrutura. Ou seja, dentro do futebol existem situações em que pode se buscar mais benefícios quando existe uma união comum. Porém, em outras situações, a organização precisa executar sua estratégia individual. E não tem nada de novo aqui, a não ser esta busca de equilíbrio sugerida por Adner. Por exemplo, alterações regulamentares, mudanças no formato das competições ou até venda de direitos de transmissão podem trazer benefícios quando tratados em conjunto. Já comercialização de produtos e serviços, venda de jogadores e comercialização de planos de sócios, normalmente são executados de forma individual pelos clubes. Ainda assim, mesmo sabendo destes possíveis benefícios, boa parte dos atores do futebol profissional brasileiro buscam realizar atividades visando objetivos próprios.
E qual seria o sentido de um alinhamento coletivo de certas atividades dentro do ecossistema do futebol?
É justamente o de se unir para buscar benefícios coletivos que de forma individual dificilmente irão alcançá-los. Isto significa que, em um primeiro momento, se busque uma união onde o objetivo seja o alinhamento. No caso do futebol seria a criação de uma liga ou algo parecido. Porém não é apenas a criação de uma liga que estrutura o ecossistema. Outras partes do todo devem se organizar em paralelo. Uma possível evolução passa pela reorganização de outros elementos dentro das dimensões competitiva, regulamentar, econômica e tecnológica. Por exemplo, modernização das instituições responsáveis pelo futebol (nacional e continental), organização e desenvolvimento das competições, reflexão sobre a competitividade dos clubes, atualização dos estatutos jurídicos dos clubes e dos atletas, estruturação de controles regulamentares, adaptação a nova realidade dos direitos de transmissão, modernização da gestão dos clubes, modernização das infraestruturas, adaptação as novas tecnologias, entre outras. Todos estes elementos podem fazer parte do tal equilíbrio sugerido pelo autor e são exemplos de reformas ocorridas em grandes ligas europeias que também passam ou passaram por períodos de evolução.
As ligas perceberam, mesmo antes da crise sanitária, que tomar medidas que incentivam a aquisição de atletas talentosos e influentes, realizar melhorias na qualidade dos estádios, valorizar a qualidade do espetáculo, defender a diversidade e o respeito, negociar direitos de imagem dos clubes e dos jogadores de forma coletiva, todas elas representam práticas que criam valor e trazem vantagens ao conjunto de atores do ecossistema, tornando o mesmo mais atrativo.
E são os períodos de ruptura, como o que estamos vivenciando agora com a crise sanitária, que são favoráveis para uma reorganização deste tipo, pois em tais épocas surgem novos atores, outros desaparecem, novos líderes se manifestam e novas regras nascem. Apesar disso, são tempos também próprios para o surgimento de novos ecossistemas concorrentes, o que pode se tornar uma barreira quando se trata de uma evolução estrutural. No caso do Brasil, competições internacionais de futebol e até de outros esportes já entenderam as regras do jogo e buscam o seu espaço propondo valores que o ecossistema do futebol brasileiro ainda não entrega. A evolução leva tempo e precisa ser realizada de forma séria e organizada. Ainda há tempo!
Crédito imagem: Fancy Crave
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Fernando Cezar é administrador especialista em gerenciamento de projetos e mestre em consultoria e pesquisa. Atualmente cursando doutorado em Ciências de Gestão sobre o processo de reorganização do ecossistema do futebol profissional francês em um contexto de evolução de modelo de negócios.