Ao longo dos anos, o futebol, assim como a maioria dos esportes, deixou de ser um simples desporto, passando a se aproximar cada vez mais do entretenimento, atrair cada vez mais o público, se profissionalizando e movimentando cifras que são capazes de impactar a economia dos países. Com essa inevitável evolução, a modalidade vem adotando não somente práticas corporativas de boa governança, de compliance, como estratégias comerciais, que se refletem diretamente na complexidade dos contratos.
Com efeito, as transferências, que antes se resumiam a um contrato de uma ou duas páginas bem simples, passaram a se tornar cada mais específicas, detalhadas, com o intuito de dividir o risco do negócio e também criar alternativas para as crises econômicas, seja individualmente de cada clube ou de maneira geral como a causada pela pandemia.
Foram elaborados e aprimorados, principalmente nas últimas duas décadas, diversos conceitos presentes nas transferências e/ou contratos de trabalho como: cláusula sell-on, bônus por desempenho individual ou coletivo, bônus por assinatura, bônus por fidelidade, porcentagem na venda de camisas ou no aumento dos valores arrecadados com patrocínio, remuneração em cripto ativos, dentre outros.
Nesse sentido, foi priorizado o livre mercado e que os clubes tivessem a liberdade de pactuar os termos contratuais, sempre, é claro, em conformidade com a legislação dos respectivos países. No entanto, apesar dessa liberdade, essas cláusulas deveriam resguardar e proteger certos princípios do esporte. Para isso, foi necessário que a FIFA fiscalizasse, regulasse, interviesse e até punisse, baseado em seus regulamentos, em atenção ao princípio da legalidade.
Por conseguinte, a introdução do artigo 18bis no Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[1], no ano de 2008, também conhecido como TPI (third-party influence), foi um dos exemplos marcantes dessa atuação da entidade máxima do futebol. Esse dispositivo proíbe a influência de terceiros ou de clubes alheios ao contrato de trabalho e nas transferências, o que ainda desperta muitas discussões no meio jurídico, foi o tema central de um artigo produzido por mim aqui nessa plataforma no ano passado[2].
Em síntese, a FIFA pretendia alcançar alguns objetivos com essa proibição: assegurar a integridade e a transparência no esporte, a autonomia dos clubes e do jogador, além de garantir a estabilidade contratual. Contudo, a falta de uma definição bem clara sobre o conceito de influência, somada à abertura de procedimentos disciplinares contra os clubes e possíveis violações à Legislação Europeia, fizeram o tema ser judicializado, chegando até o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS).
O Tribunal reconheceu que, embora pudessem conter aspectos restritivos à livre concorrência, o referido artigo, juntamente com o 18ter, não chegavam a violar a legislação europeia. Além disso, estavam justificados por um interesse legítimo e geral, como também eram extremamente necessários para que a FIFA pudesse alcançar os objetivos desejados, como a manutenção da integridade do esporte.
Sem embargo, a construção do conceito foi sendo feita através da jurisprudência, seja por meio de decisões tomadas pelos órgãos decisórios da FIFA, como também pelo CAS. Em 2020, a FIFA compilou as principais decisões sobre os artigos 18bis e 18ter, no que foi chamado de Manual dos TPI e dos TPO[3], para dar transparência às resoluções aplicadas e para ajudar a esclarecer quais cláusulas infringiriam o conceito de influência. Uma das cláusulas condenadas às sanções da entidade suíça seria aquela que pudesse influir na escalação de jogadores nas partidas.
Isso posto, partimos para o exame do caso concreto desse texto. O conflito em questão inclui um clube russo e um japonês, que firmaram um contrato de cessão temporária de um atleta, conhecido popularmente como empréstimo. Em uma das cláusulas dessa avença, constava a obrigação de pagamento de 100 mil euros ao clube russo se o jogador atuasse em menos de 50% das partidas da Liga Japonesa até o final do contrato de cessão temporária. Somente as partidas que o futebolista atuasse por mais de 45 minutos seriam contabilizadas como um jogo.
Ato contínuo, essa cláusula foi revista pelo departamento do TMS da FIFA, que acabou denunciando como possível violação ao artigo 18bis do RSTJ e o clube japonês como possível omissão/erro de informações no sistema do TMS, regulado pelo anexo 3. Posteriormente, o Comitê Disciplinar da FIFA puniu ambos os clubes com uma multa que beirava os 10 mil francos suíços, além de uma advertência, o que não foi objeto de recurso pelas equipes.
Ato contínuo, meses após o evento, o clube russo entrou em contato com os japoneses solicitando o pagamento do valor estipulado na cláusula, pois o atleta teria atuado somente em 39% por cento das partidas da Liga Japonesa. Em resposta, o clube japonês se negou ao pagamento e o impasse chegou até a Câmara de Status dos Jogadores (Players’ Status Committee, em inglês), que condenou o clube japonês a adimplir a obrigação estabelecida no contrato.
Irresignado, o Vegalta Sendai recorreu ao CAS[4]. O clube japonês sustentava que a cláusula era nula e ilegal, não podendo ser executada, posto que a FIFA considerava a conduta proibida, o que já havia sido alvo de sanção, e, ao mesmo tempo, não poderia validá-la baseada em outro princípio, reconhecendo-a como legal e permitida. Segundo os asiáticos, isso poderia gerar insegurança jurídica.
Além disso, alegavam que o jogador ficou impossibilitado de atuar na maioria das partidas da temporada devido a uma lesão e que isso teria tornado a obrigação exigida pela cláusula impossível de ser cumprida. Por outro lado, os russos suscitavam que a infração caracterizada ao artigo 18bis não tornaria, por si só, a cláusula ilegal, uma vez que ela estava em consonância com o princípio da liberdade contratual e com a legislação suíça, sobretudo com o Código de Obrigações. Para eles, o regulamento da FIFA não determina e nem sequer poderia, se uma cláusula é ilegal, inválida ou inexequível e sim a legislação suíça, no caso concreto.
Do mesmo modo, deveria prevalecer o pacta sunt servanda e a liberdade das partes, tendo em vista que ambas redigiram a cláusula daquela maneira, sem incluir a possibilidade das lesões ou inelegibilidade do futebolista nos termos. Sendo assim, não se poderia dar uma interpretação extensiva, para fora daquilo que havia sido pactado pelos clubes.
O Tribunal desestimou o recurso dos japoneses. Em sua fundamentação, a decisão afirmou que as partes eram livres para negociar as cláusulas, desde que não impusessem uma obrigação excessiva para um dos polos, sempre de acordo com a Legislação Suíça. Outrossim, o regulamento da FIFA não determina as consequências contratuais entre as partes em virtude da violação do artigo 18bis.
Da mesma forma, no que diz respeito a impossibilidade do cumprimento da obrigação (atuação em mais de 50% dos jogos), o CAS definiu que aquela cláusula foi fixada com o intuito de salvaguardar e contribuir para o valor atual e futuro do atleta. Para tanto, era fundamental que ele jogasse regularmente.
Consequentemente, era imprescindível a leitura do termo de acordo com aquilo que estava estritamente escrito, sem interpretações extensivas. Se as partes tivessem pensado na possibilidade de lesões, certamente ela estaria presente na cláusula, o que, para o árbitro único, seria corolário do princípio da boa-fé, resguardando a real intenção das partes quando da elaboração da minuta.
A legalidade e a exequibilidade entre as partes de uma cláusula que violou frontalmente o artigo 18bis, o que foi chancelado pela FIFA e o TAS, embora esteja em perfeita conformidade com o Direito Suíço, ao meu ver, é um ponto bem perigoso.
Isso porque, pode gerar um efeito cascata com a multiplicação de contratos nesse sentido e, provavelmente, dar azo ao surgimento e crescimento, novamente, das cláusulas de TPO (third-party ownership of players’ economic rights), que são igualmente proibidas pelo regulamento. Frise-se, não se pretende aqui fazer qualquer juízo de valor acerca da medida de proibir o TPO.
A propósito, a legislação brasileira, através do artigo 27-B da Lei 9.615/98 (Lei Pelé) considera nulas de pleno direito as cláusulas de TPI, entre as entidades de prática desportiva e terceiros, ou entre estes e atletas, que sejam capazes de intervir ou influenciar nas transferências de atletas ou, ainda, que interfiram no desempenho do atleta ou da entidade de prática desportiva. Contudo, nem todos os países possuem a mesma normativa.
Ademais, é importante debater um aumento do valor das sanções pecuniárias ou outro tipo de constrição para esses dois tipos de infração, pois podem ser fundamentais para que elas não voltem a crescer, como deseja a própria entidade máxima do futebol, e para que seu regulamento não se torne inócuo.
Conforme o exposto, a pacificidade do sistema foi colocada em risco em prol da liberdade contratual das partes e o precedente promete trazer mais discussões para os operadores do Direito Desportivo, membros do esporte e do mercado. Entretanto, considero muito difícil, a priori, a rediscussão sobre a vedação ao TPI/TPO nos próximos anos. Esperaremos os próximos desdobramentos.
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[1] RSTJ – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-Edicion-de-julio-de-2022.pdf (fifa.com) – última consulta: 27.07.2022
[2] A flexibilização do conceito de influência pelo Tribunal Arbitral do Esporte e suas consequências – Lei em Campo – última consulta: 27.07.2022
[3] Manual dos TPI e TPO – ypkyca98svbpfxu1nawu-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 27.07.2022
[4] CAS 2021 A 8306 Velgata-Sendai v CSKA Moscow v FIFA – CAS-2021-A-8306-Velgata-Sendai-v-CSKA-Moscow-FIFA.pdf – última consulta: 27.07.2022