Estamos fechando março, mês que homenageia a luta das mulheres por igualdade e autonomia. Época que nos faz lembrar da necessidade de se engajar na batalha contra o machismo, a misoginia e o feminicídio. Por isso mesmo, mudei um pouco o foco de minhas pesquisas nos arquivos do Conselho Nacional de Desportos (CND). A ideia era tentar encontrar a norma do órgão que proibiu a prática de futebol feminino e perdurou por décadas.
Para aqueles que não estão acompanhando esta história aqui na coluna, tenho escrito acerca de documentos oficiais que encontrei e que relatam os primeiros tempos do poderoso CND, suas reuniões e deliberações iniciais.
O mistério acerca da vedação da prática do futebol feminino reside na pretensa vagueza do texto da primeira Lei Geral do Esporte brasileira, o Decreto-lei n° 3.199, de 1941. Vamos ao dispositivo:
Art. 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompativeis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.
Como se vê, houve um duplo comando na norma: (1) vedar a prática esportiva às mulheres nas modalidades tidas como incompatíveis à “sua natureza”, assim como (2) delegar ao CND, órgão colegiado governamental criado também pelo decreto-lei, a função de regulamentar a matéria.
Em todas as minhas leituras acerca da matéria até o momento, as autoras e os autores que sobre isso escreveram citaram o art. 54 do referido decreto-lei, sem fazer menção à posterior e necessária (legalmente falando) regulamentação pelo CND.
Vamos então à reconstrução jurídica da história por traz da vedação do futebol feminino por mais de 40 anos no Brasil (1941 – 1983). Como se sabe, Getúlio Vargas surge como líder do país após a vitória da Revolução de 1930 e sua afirmação quando derrota a contrarrevolução levada a cabo em território paulista em 1932. Sob o varguismo, o país experimentou a modernização econômica, a industrialização e maior independência no cenário internacional. É de se lembrar que o Governo Vargas instituiu a proteção ao trabalho com a edição da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e declarou guerra ao Eixo Nazifascista em 1942. Mas era um regime repleto de contradições. A partir de 1937, Getúlio conduz o país para uma ditadura, à qual se denomina por Estado Novo. O Congresso Nacional é fechado e o presidente passa a ter poder para baixar leis por decretos, os chamados decretos com força de lei ou decretos-lei. Não havia, portanto, aprovação parlamentar às leis, todas elas passando a emanar do próprio punho do chefe do poder executivo.
Cioso da situação de divisão em que se encontrava o esporte nacional desde o chamado “Dissídio Esportivo”, Getúlio nomeia uma comissão de notáveis para redigir um projeto de decreto-lei que viesse a significar a intervenção do Estado Novo no campo esportivo. Assim, o referido grupo entregou ao presidente da República por meio do ministro Gustavo Capanema o esboço do que viria a ser o Decreto-lei n° 3.199, de 1941, justamente a primeira lei geral do esporte do país.
Na exposição de motivos que o min. Capanema encaminhou ao presidente em conjunto ao anteprojeto, nada sobre a vedação de prática esportiva por parte das mulheres. Não houve, portanto, uma justificativa prévia para a adoção do texto constante do art. 54 do decreto-lei.
Na mesma linha, no seu discurso na instalação do novo órgão de comando e intervenção no esporte brasileiro, o CND, em 7 de julho de 1941, Capanema, seu presidente, disse que o colegiado deveria focalizar “a questão da prática dos desportos pelo sexo feminino para salientar os cuidados que este assunto deve merecer do Conselho”. Nada de maiores detalhes.
Na mesma ata, consta, porém, que: “O Senhor Presidente distribuiu os seguintes encargos: […] instruções relativas à prática dos desportos pelo sexo feminino, artigo cinquenta e quatro da mesma lei, conselheiro General Newton de Andrade Cavalcanti; …”
Bom, ao menos eu já havia encontrado o caminho. O presidente do CND havia incumbido um dos membros do órgão, justamente um dos militares, para relatar instruções referentes à regulamentação do art. 54 do Decreto-lei n° 3.199, de 1941, alusiva à prática esportiva por mulheres.
Inquieto com a falta de mais detalhes acerca do trabalho que o general Newton Cavalcanti haveria entregado, resolvi ir mais fundo ainda no “baú” de histórias do CND. Ou, mais abaixo, lá no porão mesmo do colegiado.
E, “fiat lux”, a resposta estava em outra ata de reunião do CND. Em 2 de setembro de 1941, ainda em sua quarta sessão, o colegiado máximo do esporte no Brasil deliberou acerca das permissões e vedações às mulheres no esporte. O resultado é a instrução que reproduzo na íntegra abaixo:
Conselho Nacional de Desportos
ATA DA QUARTA SESSÃO ORDINÁRIA DO CONSELHO NACIONAL DE DESPORTOS
Aos dois dias do mês de setembro de mil novecentos e quarenta e um, no local e hora mencionados nas atas anteriores, realizou-se a sessão semanal do Conselho, com a presença dos conselheiros General
Newton Cavalcanti, Almirante Alvaro de Vasconcellos, Drs. João Lyra Filho e Luiz Aranha, este último empossado pelo Senhor Ministro da Educação e Saude, em cujo gabinete assinou o termo legal. Na ausência do Senhor Ministro Dr. Gustavo Capanema, impossibilitado de comparecer por motivo de força maior e pedido do mesmo, o conselheiro General Newton Cavalcanti assumiu a presidência do Conselho e declarou aberta a sessão
[…]
O sr. presidente põe em discussão o projeto de Instrução, de sua autoria, relativo às atividades desportivas da mulher, apresentado em sessão anterior. Estudado meticulosamente foi o mesmo aprovado. Estabelece o projeto, nas suas conclusões, as seguintes regras para os desportos femininos:
Marchas — com finalidade exclusivamente higiênica, são uteis ao desenvolvimento e à saúde da mulher;
corridas — as de velocidade até 200 metros, revesamento até 400 metros (4 x 100) e as barreiras com o percurso diminuido e as barreiras de menor altura, sendo, no entanto, proibidas as de meio fundo, fundo e “cross country”;
saltos — permitir unicamente os em largura e altura. Não permitir a prática dos saltos com vara, em profundidade e tríplices;
lançamentos — deverão apenas ser executados os de peso, disco e dardo, sendo que o peso de todos eles deve ser inferior ao dos usados pelos homens. Interditar o lançamento do martelo;
pentathlon, decathlon — lutas e box — são desportos que não devem ser permitidos para uso do sexo feminino;
esgrima — é um excelente exercício para regular o sistema nervoso, principalmente quando praticado por ambos os braços;
remo — natação — saltos ornamentais — hockey — golf —patinagem — equitação e tiro de pistolet — são desportos individuais que devem ser praticados pelo sexo feminino. O remo, porem, não deve ser praticado em competições e será utilizado como meio de corrigir certas deficiências orgânicas;
Desportos coletivos – os mais aconselhados para prática do sexo feminino são os de peteca, péla, tenis, voley e basket-ball, sendo que este último deve ter os seus campos e tempos de duração reduzidos. Neste gênero deve ser terminantemente proibida a prática do futebol, rugby, polo e water polo, por constituirem desportos violentos e não adaptaveis ao organismo feminino.
Como se vê, o mesmo regime que reconheceu a vitória às mulheres sufragistas, admitindo o voto feminino nas eleições do país, proibiu-lhes a prática esportiva diversas modalidades, dentre elas a o “terminantemente” o futebol.
Além de se imiscuir em assuntos estritamente vinculados ao núcleo da autonomia esportiva, as regras de jogo, o CND incumbiu um homem para apresentar a um colegiado composto apenas por pessoas do sexo masculino uma norma que dizia o que seria bom ou ruim no esporte para as mulheres. Uma instrução dos homens acerca do que seria a “natureza feminina” para fins de prática esportiva.
Não há menção alguma sobre de ter sido consultada qualquer pessoa do sexo feminino para a redação da instrução. Nenhuma especialista no assunto foi ouvida. E, sim, àquela época já havia mulheres que se destacavam na área da educação física no país, inclusive compondo (subalternamente) órgãos de governo direcionados a esta área.
E a norma, ademais de não justificar o porquê das vedações em diversas modalidades, repete as “verdades” misóginas acerca do comportamento feminino: fragilidade, instabilidade emotiva, necessidade de tutela.
E assim se inicia uma histórico de comportamentos machistas e excludentes, refratários à igualdade de gêneros na gestão esportiva, nos salários e nos prêmios. Abre alas de uma insistência em uma indevida tutela masculina em assuntos femininos no esporte, que de certo modo perduram ainda hoje.
P.S. Dedico este trabalho a todas as mulheres que, com seus atos de rebeldia, continuaram a jogar futebol mesmo durante o período de proibição, assim como a todas as jornalistas, sobretudo as esportivas, que ainda nos dias de hoje são obrigadas a tanto lutar por respeito e igualdade.