Uma notícia que repercutiu (surpreendentemente) pouco na imprensa brasileira, mas que assustou a FIFA e pode revolucionar as transferências no futebol, precisa ser analisada com atenção. O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu neste mês que uma das regras de transferências da FIFA viola a legislação europeia e não pode ser aplicada.
Para entender, o Tribunal decidiu que uma regra de transferência de jogadores de futebol vai contra as leis da União Europeia, atingindo os princípios de livre circulação de trabalhadores, assim como o da livre concorrência.
As normas sobre transferência de jogadores da Fifa (RSTP, na sigla em inglês) – mais precisamente o art 17 – dizem que um jogador que termina um contrato antes do prazo “sem justa causa” é responsável por pagar uma compensação ao clube e, quando o jogador se junta a um novo clube, eles serão conjuntamente responsáveis pelo pagamento da compensação.
Essa regra foi um caminho encontrado pelo sistema do futebol de proteger contratos e garantir uma compensação econômica em caso de rescisão depois da decisão do Caso Bosman, que acabou com a Lei do Passe no futebol.
Analisando o caso do ex-jogador Lassana Diarra, o Tribunal afirmou que essas disposições são ilegais, e que espera que a decisão leve a Fifa a reformar a regulamentação de transferência.
Essa decisão desconstrói o conceito de clube indutor, onde havia presunção de que um terceiro clube teria estimulado uma quebra contratual do atleta com o clube anterior, colocando, o atleta e o novo clube como responsáveis solidários ao pagamento ao ex-clube que teria quebrado o contrato sem justa causa.
Diz a decisão, entre outros tópicos:
As regras em questão impedem a livre circulação de jogadores de futebol profissionais que desejam desenvolver sua atividade indo trabalhar para um novo clube….
Essas regras impõem riscos legais consideráveis, riscos financeiros imprevisíveis e potencialmente muito altos, bem como riscos esportivos importantes para esses jogadores e clubes que desejam empregá-los, que, juntos, são tais que impedem as transferências internacionais desses jogadores.
Importante, a decisão também traz que outros jogadores afetados pelas regulamentações da Fifa que agridam esses princípios também podem ser indenizados.
Claro que a decisão do TJUE tem força entre as partes litigantes e que o Tribunal detém jurisdição apenas sobre os países integrantes da União Europeia. Mas ele pode abrir precedente no Tribunal e ir além, requerer ao Conselho Europeu e demais órgãos da UE que o julgado se imponha a casos análogos.
O “caso Lassana Diarra”
Em 2014, Lassana Diarra, ex-volante do Real Madrid, Chelsea e PSG, teve seu contrato rescindido pelo Lokomotiv Moscou, da Rússia, quando ainda tinha mais um ano de vínculo. O jogador não reconheceu a rescisão, mas, mesmo assim, foi condenado a pagar uma indenização.
O Lokomotiv afirmou que Diarra não cumpriu seu contrato e exigia 20 milhões de euros (R$ 124 milhões) perante a Câmara de Resolução de Disputas (DRC) da FIFA e a Corte Arbitral do Esporte (CAS).
A Câmara de Resolução de Disputas da FIFA condenou Diarra a pagar 10,5 milhões de euros ao Lokomotiv. Após a decisão, o ex-jogador recorreu ao TJUE.
Por conta dessa briga jurídica com o clube russo, Diarra ficou um ano longe dos gramados. O ex-jogador alegou que a situação prejudicou sua carreira, uma vez que possíveis equipes interessadas se afastaram de um acerto com o francês por conta da indenização devida ao Lokomotiv Moscou, conforme previsão no RSTP.
Impactos
A decisão do Tribunal Europeu é importantíssima e pode – sim – fazer com que a FIFA reveja suas regras. Muita gente me perguntou se essa decisão poderia ter o impacto da decisão do Caso Bosman – que escrevi aqui. A resposta é, ainda não dá para saber, mas o caso vai gerar muita discussão”
A imunidade da Fifa está sendo questionada e a governança da FIFA precisará refletir e agir. A decisão mexe com o sistema de transferência enraizado do futebol, afetando a transferência de atletas e diretamente o mecanismo de sanção da FIFA.
Mesmo que a FIFA não confirme essa apreensão abertamente, garantindo que os princípios-chave do sistema de transferências foram protegidos na decisão e que apenas alguns parágrafos do Regulamento foram questionados pelo Tribunal Europeu, ela esta apreensiva.
A verdade é que essas irritações – que aparecem também depois de decisões judiciais – têm provocado mudanças e melhoria no sistema interno do futebol. A manifestação coletiva de atletas tem um peso importante nisso.
David Terrier, presidente da FIFPro Europa (entidade que congrega atletas profissionais), disse que estava feliz por Diarra, mas que ele não era a única vítima.
“A realidade é que vamos ver como reparar o dano para todos os jogadores que foram vítimas do sistema de transferências”, disse Terrier à Reuters.
A grande discussão agora é, que impacto isso pode trazer?
A decisão pode desencadear um efeito dominó, aumentando assédio de clubes sobre jogadores e determinando um maior número de rompimento contratual sem justa causa.
Isso afetaria a estabilidade contratual e a economia dos clubes, já que a decisão poderia resultar em taxas de transferência reduzidas e mais poder econômico para os jogadores.
E agora?
A FIFA precisa encontrar um caminho – assim como fez depois do Caso Bosman – para proteger a economia dos clubes em equilíbrio com direitos garantidos dos trabalhadores da bola.
Todos os clubes podem ser afetados. Os clubes menores dependem de taxas de transferência para talentos que desenvolveram, e os grandes que ainda têm nessa compensação um ganho econômico, além de uma garantia da estabilidade contratual e do planejamento técnico.
É importante que se encontre um caminho em que o contrato de trabalho dos atletas respeite o direito humano fundamental do jogador de trabalhar, protegendo também a estabilidade contratual e a economia do futebol.
Agora, é esperar para ver se a decisão firmará jurisprudência e entender o que a FIFA irá fazer para que essa decisão não venha a ter um efeito cascata.
Só depois disso, se saberá se estamos mesmo diante de um novo Caso Bosman, que também mereceria um nome próprio, o “Caso Diarra”.
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