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Entendendo as razões por trás da suspensão do Novo Regulamento de Agentes FIFA

Por Hudson de Paiva Barbosa Junior[1]

  1. INTRODUÇÃO

Menos de um ano após a entrada em vigor do novo Regulamento de Agentes FIFA[2] (FFAR) e após diversas insurgências de intermediários ao redor do mundo, a FIFA, por meio da circular no. 1873, decidiu suspender “temporariamente” o regramento a nível mundial. Segundo a Federação, a suspensão é uma resposta ao fato de ela ter sido alvo de uma estratégia coordenada, na qual agentes e associações de agentes entraram com ações ao redor da Europa para desafiar a legalidade do FFAR e atrasar a sua entrada em vigor. O escopo da suspensão é limitado e aborda apenas os artigos declarados ilegais pelo Tribunal Regional de Dortmund[3].

O Tribunal de Dortmund, em 24 de maio de 2023, emitiu decisão preliminar contra a FIFA e contra a Associação de Futebol Alemã (DFB)[4]. A Corte entendeu que algumas regras do FFAR não podem ser aplicadas, pois violam a legislação concorrencial europeia, especificamente o artigo 101º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFEU). A decisão proibiu a FIFA e a DFB de aplicar os artigos do FFAR que infringem o TFEU, sob pena de multa de € 250,000 (duzentos e cinquenta mil euros) por violação. A FIFA recorreu da decisão e aguarda uma resposta definitiva ainda no primeiro semestre de 2024.

Ocorre que o tribunal alemão não foi o único a analisar a legalidade do FFAR, uma vez que a disputa foi levada à apreciação da Corte Arbitral do Esporte (TAS/CAS), que emitiu decisão favorável à FIFA. Não obstante, em outros países como Espanha e Inglaterra também houve discussões acerca das normas implementadas pelo FFAR, com decisões favoráveis aos agentes.

Portanto, a suspensão temporária do FFAR se apresenta como uma resposta da FIFA à diversas decisões desfavoráveis envolvendo o novo Regulamento, principalmente no que toca às questões envolvendo o limite das comissões dos agentes, o pagamento pro rata e a vedação à dupla representação. O principal entendimento apresentado nas decisões dos tribunais europeus é o de que o FFAR contraria normas consolidadas no direito concorrencial europeu, principalmente no que diz respeito à fixação de preços e ao abuso de posição dominante da Federação.

  1. DECISÃO DO TAS/CAS

No caso levado ao CAS, PROFAA[5] v. FIFA, o Tribunal entendeu que a FIFA poderia justificar a busca por objetivos de interesse público reconhecidos pelo ordenamento jurídico da União Europeia, ainda que as disposições contestadas do FFAR pudessem infringir sua legislação concorrencial, desde que fossem proporcionais e apropriadas para alcançar os objetivos intendidos. Logo, o painel julgador identificou que os objetivos perseguidos pela FIFA são legítimos e a limitação dos honorários é uma medida adequada e proporcional para alcança-los, de modo que não há de se falar em invalidade dos artigos do FFAR[6]. Além disso, o Tribunal pontuou que a atividade de agenciamento não é meramente periférica ao esporte, mas interfere diretamente na organização e funcionamento do mercado de serviços de jogadores, no que diz respeito à sua contratação e transferência.

A decisão foi baseada a partir dos parâmetros do caso Meca-Medina[7], onde, em 2006, a Corte Europeia de Justiça (ECJ) analisou a compatibilidade de regras de dopagem e as consequentes sanções aplicadas pela Fédération Internationale de Natation (FINA) com a legislação concorrencial europeia. A ECJ decidiu pela aplicação da legislação europeia às federações esportivas, mesmo quando lidando com regras de natureza puramente esportiva. No entanto, a decisão, que se configurou como prevalência da legislação estatal em relação à autonomia esportiva (tal qual no caso Bosman), estabeleceu que nem toda regulação associativa que restringe a competição constitui uma violação às proibições estabelecidas pelo artigo 101º do TFEU, eis que os efeitos restritivos de uma norma emitida por ela podem ser considerados necessários para a prossecução de um objetivo esportivo legítimo[8].Não obstante, a ECJ entendeu que as restrições não podem exceder o necessário para a consecução desse objetivo (princípio da proporcionalidade).

  1. DECISÕES DOS TRIBUNAIS EUROPEUS

3.1 Alemanha

O Tribunal de Dortmund, no julgamento do caso, proferiu decisão contrária à do CAS no que tange à legalidade do FFAR. O Tribunal abordou duas questões principais na sentença: i) se as disposições do FFAR impedem, restringem ou falseiam a concorrência por “objeto” ou “efeito”; e ii) se as regras do FFAR eram imunes à legislação concorrencial europeia, nos termos do Meca-Medina Test[9]. Após análise, o Tribunal Regional de Dortmund entendeu que o limite máximo dos honorários visa restringir a concorrência. O Tribunal identificou o cap como uma fixação de preços, que é, pela sua própria natureza, prejudicial ao bom funcionamento da concorrência normal[10].

Posteriormente, o Tribunal Regional de Dortmund avaliou se a limitação de honorários escapava ao âmbito de aplicação do artigo 101º do TFEU, devido a questões de ordem pública. Para isso, o Tribunal considerou a aplicação do Meca-Medina Test. Contudo, na decisão, entendeu que o FFAR não se configura como regulamento puramente esportivo, de modo que inaplicável o teste em questão e, consequentemente, a exceção às regras da legislação antitruste europeia. Os argumentos do tribunal foram convincentes: apenas a regulamentação que afeta diretamente o que acontece no campo deve ser isenta do escopo do direito da concorrência. Se a concorrência “fora do campo” for restringida, a lei da concorrência deverá geralmente intervir. A decisão do Tribunal Regional de Dortmund se encontra em conformidade com a abordagem do Tribunal Regional de Frankfurt[11][12]. Assim, por entender que as medidas adotadas pelo FFAR violam as normas concorrenciais da União Europeia e por inaplicáveis as exceções (legais[13] e jurisprudenciais), o Tribunal de Dortmund decidiu que a FIFA não pode aplicar algumas das disposições do FFAR.

3.2 Espanha

Assim como a Corte de Dortmund, o Tribunal de Madrid entendeu que a aplicação dos artigos 15, 1 e 2, do FFAR constitui violação à legislação antitruste espanhola/europeia, uma vez que o ordenamento concorrencial proíbe, entre outras condutas, decisões de associações de empresas que tenham, por efeito ou objeto, condão de impedir, restringir ou distorcer a concorrência no mercado interno[14]. A sanção, nesses casos, seria a nulidade de pleno direito da conduta.

Utilizando o termo “restrições acessórias”, o Tribunal espanhol julgou que não poderiam ser aplicadas as exceções ao artigo 101º, 1., uma vez que o artigo 15 do FFAR não respeita o princípio da proporcionalidade. A decisão se baseou no fato de que a fixação do limite de honorários, ao não possuir caráter fixo, depende das circunstâncias que envolvem o caso concreto, o que supõe que o limite de honorários poderia dar lugar a uma fixação direta ou indireta do preço máximo da prestação dos “outros serviços” de intermediação, acrescido da presunção de que o serviço prestado pelo agente teria tal natureza, sendo ônus do próprio agente provar o contrário (caso pretenda que o limite não seja aplicado aos seus honorários), conforme estabelece o artigo 15, 3 e 4 do Regulamento. Assim, conquanto não tenha citado expressamente os parâmetros Wouters/Meca-Medina, a corte espanhola deixou claro ter considerado as exceções (normativas e jurisprudenciais) ao artigo 101º do TFEU, entendendo que, ao não respeitar o princípio da proporcionalidade, o artigo 15 do Regulamento não se configura como uma exceção às ofensas. Logo, decidiu por ordenar à FIFA que se abstenha de aplicar o dispositivo, devendo respeitar o status quo no que tange a ausência de limitação aos honorários dos agentes.

3.3 Inglaterra

Na Inglaterra, os agentes também obtiveram decisão favorável na luta contra as diretrizes do FFAR. Em procedimento arbitral, onde litigaram importantes agências do Reino Unido v. FA (The Football Association), concluiu-se que alguns elementos importantes do FFAR se apresentam incompatíveis com a legislação concorrencial britânica (Competition Act 1998), concluindo pela impossibilidade de suas implementações.

 Ao analisar a questão, o Tribunal concluiu que as regras do FFAR não podem ser analisadas sob os parâmetros Wouters/Meca-Medina, uma vez que não se trata de uma regulamentação de atividades esportivas, mas puramente mercadológicas, em consonância com a sentença proferida pelo Tribunal de Dortmund. Ainda assim, o painel britânico analisou se as restrições poderiam ser validadas como uma medida razoável a fim de resolver falhas de mercado e abusos alegados pela FIFA dentro do sistema de transferências de jogadores.

 No entanto, o painel não conseguiu identificar qualquer conexão justificável entre as medidas adotadas pelo FFAR e os alegados abusos e falhas, concluindo que a fixação de preços e as regras de pagamento pro rata não se apresentam como medidas proporcionais. Segundo o painel, as medidas foram implementadas para reduzir consideravelmente as comissões dos agentes e, portanto, não perseguem objetivo legítimo, se apresentando como uma fixação vertical de preços e, consequentemente, um abuso de posição dominante, violando a legislação concorrencial do Reino Unido (especificamente os capítulos 1 e 2 do Competition Act 1998).

  1. CONCLUSÃO

Nota-se, portanto, que a suspensão do FFAR ocorreu após derrotas nos países com as principais ligas de Futebol da Europa. Com a suspensão, disposições importantes implementadas pela FIFA – como o teto de honorários e a dupla representação – deixam temporariamente de produzir efeitos e o Regulamento perde grande parte de seu escopo.

No entanto, a revogação temporária do FFAR não é apenas o cumprimento de uma obrigação estabelecida por decisão do Tribunal de Dortmund, mas uma estratégia da FIFA para prevenir um possível desastre (caso permitisse a ocorrência de uma janela de inverno com um regulamento em disputa, válido apenas em alguns países. O que poderia causar grandes prejuízos para os envolvidos no mercado de transferências).

Agora, finalizada a janela de transferências, aguarda-se uma decisão do tribunal alemão que, ao que tudo indica, será favorável aos intermediários. Caso isso ocorra, uma provável disputa entre Direito Público e Privado estará, mais uma vez, prestes a ocorrer no cenário do futebol profissional, a exemplo do que ocorreu no caso Bosman, em 1990, e na Super Liga, em 2021. Assim como nesses casos, as odds não são favoráveis à FIFA e mais uma derrota é esperada, sendo provável que a ECJ reconheça algumas deficiências no FFAR – aplicando ou não os parâmetros Wouters/Meca-Medina – e demande que a Federação alinhe suas diretrizes com as leis europeias e nacionais, especialmente no que diz respeito ao direito concorrencial, para garantir que sejam proporcionais, transparentes, não discriminatórias e respeitem o devido processo.

Crédito imagem: FIFA/Divulgação

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[1] Advogado E-flix Esports, Aluno do MBA em Negócios do Esporte e Direito Desportivo do CEDIN, Membro do GEDD – São Judas.

[2] O FFAR entrou em vigor, parcialmente, em 1º de janeiro de 2023 e totalmente em 1º de outubro de 2023.

[3] Segundo a Circular, suspendem-se os artigos:  Artigo 15, parágrafos 1 a 4 – teto de comissões; Artigo 14, parágrafos 6, 8 e 11 – regras para recebimento de comissões; Artigo 14, parágrafos 2 e 10 – obrigação de o cliente pagar as comissões; Artigo 14, parágrafos 7 e 12 – momento em que o agente pode receber as comissões; Artigo 12, parágrafos 8 a 10 – proibição de dupla representação; Artigo 16, parágrafos 2, incisos “h”, “j” e “k” e parágrafo 4 – obrigação de informação dos agentes à FIFA; Artigo 19 – divulgação de informações dos agentes pela FIFA; Artigo 4, parágrafo 2; artigo 16, parágrafo 2, “b”; artigo 3 parágrafos 2, “c” e “d” e artigos 20 e 21 – submissão dos agentes e das entidades nacionais à FIFA; e Artigo 14, parágrafo 13 – pagamento de comissões via FIFA Clearing House (CLAUS, Cristiano e BELLOTI, Leonardo. FIFA Suspende Parte Do FFAR com Efeito Mundial, mas Mantém os Exames. CCLA Advogados, 06 de janeiro de 2024. Disponível em: https://ccla.com.br/desportivo/fifa-suspende-parte-do-ffar-com-efeito-mundial-mas-mantem-os-exames/#:~:text=Em%2030%2F12%2F2023%2C,(o%20%E2%80%9CFFAR%E2%80%9D) Acesso em: 09 de março de 2024).

[4] LG Dortmund, 24.5.2023, 8 O 1/23 (Kart).

[5] Associação de Agentes de Futebol Profissional.

[6] CAS 2023/O/9370.

[7] Processo C‑519/04 P (David Meca‑Medina e Igor Majcen x Comissão das Comunidades Europeias).

[8] JAKOB, Holger. The Super League, the European Sports Model and Antitrust Law. The International Sports Law Journal (2023) 23:259–265. T.M.C. Asser Instituut, 01 de agosto de 2023.

[9] No teste, baseado nos parâmetros dos casos Wouters/Meca-Medina, devem ser analisados três pontos principais: i) a legitimidade do objetivo perseguido pelo regulamento; ii) se a restrição da concorrência é inerente à prossecução do objetivo; e iii) com a devida a observância do princípio da proporcionalidade, de modo que, satisfeitos os pressupostos, o Regulamento poderia escapar à proibição estabelecida no art. 101 do TFEU.

[10] LICHTENBERG, Tim. FIFA’S Football Agents Regulation Violates Competition Law. University of Cologne. Kluwer Competition Law Blog. Colônia, Alemanha: 20 de julho de 2023. Disponível em: https://competitionlawblog.kluwercompetitionlaw.com/2023/07/20/fifas-footballagents-regulation-violates-competition-law/ Acesso em 09 de março de 2024.

[11] Segundo Lichtenbrg, o Tribunal Regional de Frankfurt e o Tribunal Regional Superior de Frankfurt, em caso semelhante, “abordaram especificamente a questão do que constitui uma regra que é “necessária para garantir a condução adequada do desporto competitivo” na acepção de Meca-Medina. Segundo o Tribunal Regional de Frankfurt, o regulamento dos agentes de futebol não é um “conjunto de regras desportivas” ao qual se aplica o teste Meca-Medina (LG Frankfurt, 2-03 O517/18, parágrafo 112). Isso, pois a prestação de serviços de agentes de jogadores constitui uma atividade económica. O fato de a área do desporto ser abordada “reflexivamente” nas regras não é suficiente para contrabalançar a sua natureza anticompetitiva, de acordo com o Tribunal Regional de Frankfurt. Consequentemente, os objetivos relacionados com o desporto não justificariam uma restrição da concorrência num mercado a montante da competição desportiva através da aplicação do teste Meca-Medina neste caso”.

[12] LICHTENBERG, 2023.

[13] Art. 101º, 3., do TFEU.

[14] NIG: 28.079.00.2-2023/0241175 – Pieza de Medidas Cautelares 321/2023 – 0001.

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