Sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020: a UEFA anuncia que o Comitê de Controle Financeiro dos Clubes (CFCB, na sigla em inglês) decidiu punir o Manchester City por “sérias violações” ao Fair Play Financeiro, excluindo o clube de competições europeias por duas temporadas e aplicando multa de 30 milhões de Euros. Sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020: a FIA divulga ter concluído investigação sobre o funcionamento da unidade de potência da Ferrari e informa ter celebrado um acordo com a equipe.
Apenas duas semanas separam essas duas publicações, absolutamente distintas quando aos esportes e aos temas envolvidos, mas claramente semelhantes no que tange à sua estrutura: (i) casos envolvendo supostas infrações a normas da Lex Sportiva; (ii) decisões (aqui incluindo a decisão da FIA em celebrar um acordo) tomadas no âmbito das próprias entidades; e (iii) não divulgação da íntegra da decisão (no caso da UEFA) ou do resultado da investigação (no caso da FIA). Este último aspecto chama a atenção, e muitas vezes provoca reações – afinal, por que tantas decisões esportivas nem sempre são divulgadas na íntegra?
O questionamento é razoável se considerarmos o interesse dos torcedores e da própria comunidade esportiva. Por exemplo, os fãs de automobilismo, assim como as demais equipes da Fórmula 1, gostariam de entender o que foi encontrado na investigação, e por que razão a unidade de potência da Ferrari subitamente tornou-se a pior dentre as quatro atualmente utilizadas na competição; da mesma forma, os clubes que competem com o Manchester City na Europa certamente desejariam saber quais as violações cometidas pelo clube que ensejaram as punições inicialmente aplicadas pela UEFA. Mas é preciso lembrar que essas decisões foram tomadas no âmbito das próprias entidades esportivas, e em regra são protegidas pela confidencialidade.
Veja-se a hipótese da FIA: o processo de investigação é regulado pelo Artigo 4 das suas Regras Legais e Disciplinares. Seu item “ii” confere à entidade a prerrogativa de firmar acordo ao encerrar o procedimento (ao invés de leva-lo ao Tribunal Internacional da própria FIA), enquanto seu item “iv” estabelece a confidencialidade como regra durante todo o processo. Assim, por mais que a celebração do acordo e o sigilo sobre seus termos possam causar algum estranhamento, fato é que esses elementos respeitaram as normas estabelecidas no regulamento aplicável.
O mesmo ocorreu no caso do Manchester City. O CFCB não divulgou a íntegra de sua decisão com base no Artigo 33 do regulamento que rege seus procedimentos, segundo o qual as decisões recorridas à Corte Arbitral do Esporte (CAS, na sigla em inglês) não são publicadas. Portanto, pode-se dizer que o público desconhece as razões que efetivamente ensejaram a punição inicial ao clube (embora possa desconfiar, a partir das publicações do Der Spiegel). Aliás, tampouco se conhecem em detalhes até o momento os fundamentos pelos quais a suspensão do Manchester City de competições europeias foi afastada pela CAS, conforme recentemente divulgado pela Corte – ainda que a parte final do documento indicasse que a decisão seria publicada em alguns dias.
Nesse ponto, é indispensável lembrar a natureza arbitral que caracteriza os procedimentos (tanto em sede de competência originária quanto em nível de competência recursal) da CAS, que vem sendo reiteradamente reconhecida por tribunais nacionais e internacionais como órgão independente e imparcial, em consonância com o que se espera de câmaras de arbitragem mesmo fora do âmbito esportivo. É bem verdade que, em dois dos principais processos[1] nos quais essas características restaram reconhecidas, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos apontou a necessidade de a Corte dar publicidade a audiências realizadas no âmbito de seus procedimentos, o que de fato vem ocorrendo de forma mais frequente; mas não nos esqueçamos: estamos a tratar de arbitragem, método alternativo de resolução de litígios que tem na confidencialidade um de seus pilares.
Reside aí um paradoxo cada vez mais debatido no esporte. De um lado, a natureza privada das entidades (e das relações associativas entre elas) e o uso de métodos alternativos de resolução de litígios (notadamente a arbitragem, no que tange à CAS) legitimam a confidencialidade como característica das decisões proferidas na esfera estritamente esportiva. De outro lado, a busca pela formação de uma “jurisprudência” e a noção de que as decisões são de interesse da comunidade esportiva (e do público em geral) indicam ser conveniente conferir cada vez mais transparência às decisões.
À luz dessa dualidade, são muito bem vindas iniciativas como a recentemente adotada pela Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) da CBF, que publicou Boletim contendo informações estatísticas e de mérito dos casos submetidos a seu processamento. Dentre as diversas seções do documento, destaca-se aquela que apresenta “os principais entendimentos da CNRD”, sinalizando aos jurisdicionados a “jurisprudência” que vem se consolidando por meio das decisões do órgão. E tudo isso sem afastar o dever de confidencialidade em relação a cada processo, destacado no princípio da referida seção: “A confidencialidade é um dos pilares dos procedimentos da CNRD”.
Na mesma linha, também vale destacar a transparência que a FIFA confere às decisões de seus órgãos internos, como o Comitê do Estatuto dos Jogadores, o Comitê Disciplinar e a Câmara de Resolução de Disputas. No site da entidade, é possível acessar a diversas decisões, e aquelas em relação às quais se imponha a confidencialidade são devidamente anonimizadas – isto é, excluem-se as referências aos nomes das partes, de modo que não seja possível identificá-las.
Esses exemplos revelam ser viável às entidades esportivas encontrar alternativas para dar maior transparência às suas decisões e aos seus entendimentos, sem prescindir da confidencialidade usualmente inerente aos processos apreciados por seus órgãos internos. Ainda que essas soluções não assegurem necessariamente a exposição dos fundamentos adotados em casos específicos (seja pela não divulgação imediata ou pela anonimização), elas mostram a possibilidade de externar ao público de forma mais adequada as razões que embasam o posicionamento dos respectivos órgãos julgadores.
Enfim, no futebol, no automobilismo ou em qualquer outro esporte, fica a expectativa do público de que haja cada vez mais iniciativas visando dar conhecimento dos entendimentos adotados pelos órgãos esportivos. Nesse sentido, mesmo considerando legítima (e até mesmo necessária) a preservação da confidencialidade, passa a ser de interesse das próprias entidades esportivas atender aos anseios da comunidade esportiva e dos fãs por transparência, tendo em vista a externalidade positiva dessa postura. Afinal, um esporte mais transparente e melhor compreendido em suas decisões torna-se mais atrativo não apenas para os fãs, mas também para os patrocinadores.
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[1] Mutu v. Switzerland (40575/10) e Pechstein v. Switzerland (67474/10), julgados conjuntamente. Decisão disponível em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-186434%22]} .