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Entre o “mi mi mi” e o assédio moral: o limite do poder diretivo dos clubes no estabelecimento de sanções a atletas

Por Leonardo Herrero Domingos[1] e Julia Bronzatto Dutra[2]

Introdução

Com exceção dos atletas autônomos, caracterizados no artigo 28-A da Lei nº 9.615/98, o clube de futebol e seus atletas profissionais constroem uma relação de emprego dada a presença de vários requisitos que caracterizam o vínculo empregatício, conforme artigo 3º da CLT. Afinal, o atleta presta serviços ao clube como pessoa física, mediante contraprestação e de maneira não eventual, ao mesmo tempo em que se subordina às diretrizes e regras internas deste empregador. Desta maneira, nota-se que o clube é a parte que emana ordens, realiza a contraprestação e exerce o poder diretivo em face de seus atletas.

Devido ao poder diretivo, ao clube é permitida a concessão de ordens aos seus colaboradores e a adoção de meios para fiscalizar o cumprimento dos comandos emanados. Consequentemente, em caso de não cumprimento ou infração às suas diretrizes, advém do poder diretivo a permissão de outorgar sanções aos transgressores, ação esta que a doutrina trabalhista tomou o cuidado em chamar de “poder disciplinar”.

Como se sabe, a relação entre clube e atleta é pautada no estabelecimento de deveres e obrigações básicas como em qualquer outra relação empregatícia. Nesse ponto, conforme evidencia a Lei Pelé, em seu art. 34, inciso II, o clube empregador deve proporcionar condições suficientes para que o jogador participe de competições desportivas, ao passo que, de acordo com o inciso I do art. 35 desta mesma Lei, é dever do atleta participar de jogos, treinos, estágios ou outras sessões preparatórias de competições com afinco correspondente à sua condição psicofísica e técnica.

No entanto, dentre as obrigações mútuas entre clubes e atletas, não existe o direito à indisciplina. Nesse sentido, é direito das entidades de prática desportiva a criação de regras ou mecanismos que as protejam de eventuais complicações com seus colaboradores através do estabelecimento de políticas internas para que o clube, o grupo e os demais empregados da agremiação não sejam prejudicados por eventuais atos de indisciplina.

O poder diretivo dos clubes e a contratualização da disciplina nos CETD

A possibilidade de o clube coibir tais ações por meio de cláusulas contratuais advém de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico pátrio. A partir do momento em que a Lei Pelé dispõe no §4º do seu art. 28 que a legislação trabalhista poderá suplementá-la naquilo em que for omissa, ressalvadas as peculiaridades previstas na legislação dos esportistas (princípio da especificidade), é permitido ao clube empregador pactuar livremente com o empregado algumas cláusulas do CETD usando com base o art. 444 da CLT.

Afinal, é certo que os atos de indisciplina não devem ser tolerados visto que atrapalham o bom andamento das atividades do clube nas competições que disputa. Por isso, é possível que o clube puna o atleta por decorrência de atos que não coadunem com os padrões de comportamento esperados de um atleta profissional de futebol por meio do estabelecimento de cláusulas específicas em seu contrato especial de trabalho desportivo (CETD).

Desse modo, é possível concluir que os clubes não só podem como devem exercer seu poder diretivo, criar códigos internos que visem boas práticas, bem como disciplinar as relações dos empregados com a instituição. No entanto, há também limites para essas punições, uma vez que essas devem se ater também aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e legalidade.

Ainda que um atleta venha a infringir uma cláusula contratual e eventuais obrigações estipuladas, faz-se mister a atenção com os limites das sanções concedidas ao mesmo. Infelizmente, tornaram-se corriqueiras práticas dissimuladas de clubes empregadores que, ao exercer punições, acabam deixando de tratar o punido como um sujeito de direitos. (WANDELLI, 2012). Nesse espectro, o direito ao trabalho é uma das várias garantias fundamentais que alcançam os trabalhadores, incluindo-se os jogadores de futebol.

Os limites ao poder diretivo do clube: o assédio moral

Como qualquer outro trabalhador, o atleta não deve ser privado de trabalhar, nem ser afastado do grupo e impedido de conviver com os colegas. Inclusive, a entidade de prática desportiva não precisa manter o contrato com o jogador contra a sua vontade, visto que há formas legais de acabar com esse vínculo empregatício de modo unilateral e antecipado.

A opção pelo afastamento do atleta, mesmo que pagando seus salários em dia, não é uma dessas alternativas. Tal atitude, além de impossibilitar que o jogador exerça o seu ofício, provoca constrangimento, abala emocionalmente e, consequentemente, implica consequências jurídicas que podem vir a recair sobre o clube que mantiver essas ações.

O direito que a nossa legislação pátria garante aos atletas é o de não ser “encostado”, excluído, sem prévia justificativa de treinamentos ou outras atividades preparatórias. Novamente, ao jogador de futebol é resguardado o seu direito de trabalhar. Todavia, mesmo lhe sendo assegurado tal direito, a sua participação em partidas e torneios oficiais não é garantida, visto que cabe ao treinador e a sua comissão técnica decidir quem irá compor o time titular e performar o espetáculo desportivo.

Para elucidar, analisemos o caso do atleta Felipe, ex-jogador profissional do Corinthians que demonstrou o desejo de deixar o clube e transferir-se para um time italiano. A transferência não restou bem sucedida por motivos externos. Entretanto, por determinação da diretoria, o jogador foi afastado do grupo principal do clube até a realização de novas propostas. A situação se tornou tão grave a ponto de a equipe do jogador emitir uma nota contendo o que se segue:

“Servimo-nos, mais uma vez, do presente para informar que: Na manhã da Segunda-Feira, dia 19 de Julho, nos reunimos com o Sport Club Corinthians Paulista, para amigavelmente junto ao presidente Andres Sanches, acertar a rescisão de contrato do Felipe, uma vez que o atleta está, claramente, sendo vítima de assédio moral em seu trabalho. Felipe está publicamente fora dos planos da comissão técnica para a disputa da seqüência do Campeonato Brasileiro da Série A, sendo obrigado pelo clube a treinar em horário separado dos demais atletas, e sem ter acesso ao campo de treino. Felipe está ainda longe das orientações de um treinador especializado em sua posição, impedido de realizar trabalhos com bola, sendo autorizado única e exclusivamente a fazer musculação na academia. Mantendo nosso respeito ao tamanho da instituição e procurando minimizar a repercussão que sempre causa o nome de Felipe, deixamos claro que continuaremos nos pronunciando somente de forma oficial e quando fatos novos surgirem. E que, por enquanto, nosso atleta continuará em silêncio, até julgarmos oportuno que ele se pronuncie. Sem mais para o momento,

Bruno Paiva, Marcelo Goldfarb e Marcelo Robalinho. (grifo nosso)

Ou seja, apesar de não existir obrigação legal de escalar o atleta nos jogos, uma das medidas que são adotadas pelas entidade como forma de punição à indisciplina cometida por um jogador é o seu afastamento, fazendo com que este treine em separado dos colegas de trabalho e, ocasionalmente, sem bola. Nesse sentido, tais medidas podem vir a ser enquadradas como situação de assédio moral. Sobre o tema, Delgado (2016) explica que:

O assédio moral é a conduta reiterada seguida pelo sujeito ativo no sentido de desgastar o equilíbrio emocional do sujeito passivo, por meio de atos, palavras, gestos e silêncios significativos que visem ao enfraquecimento e diminuição da autoestima da vítima ou a outra forma de desequilíbrio e tensão emocionais graves. (DELGADO, 2016, p. 1363)

Ocorrendo tal situação, o Direito permite que o trabalhador não se sujeite a esse tipo de tratamento e busque meios legais para o encerramento do seu contrato de trabalho juntamente com a devida reparação dos danos sofridos. Segundo a Convenção nº 155, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalhador pode interromper a prestação de serviço (seja ele de qualquer natureza, como no caso, desportivo), conforme seu art. 13º, a saber:

“Em conformidade com a prática e as condições nacionais deverá ser protegido, de consequências injustificadas, todo o trabalhador que julgar necessário interromper uma situação de trabalho por considerar, por motivos razoáveis, que ela envolve um perigo iminente e grave para sua saúde.”

De igual maneira, é importante lembrar que a matéria também é tratada pela Constituição Federal, em seu artigo 5º, incisos V e X; pelo Código Civil, em seus artigos 186 e 187; bem como pela CLT, em seu artigo 482. Além disso, no que tange a prática de afastamento do atleta e o seu impedimento de treinar com o grupo principal, é possível constatar lesão ao direito fundamental ao trabalho, garantido pelo artigo 6º da Carta Magna.

Quanto ao disposto no ordenamento desportivo, caso seja mantida a conduta do clube, a situação é passível de gerar rescisão unilateral, de pleno direito, do CETD por parte do atleta. Isso pois, a Lei Pelé, em seu art. 28, §5, inciso IV, prevê as possibilidades de dissolução do vínculo desportivo, dentre as quais estão as hipóteses previstas no Diploma Celetista.

A jurisprudência pátria já reconhece como abusiva a prática de colocar o atleta para treinar em separado dos demais companheiros, sendo tal conduta passível de indenização. Nesse sentido, vale citar o caso paradigmático, julgado pelo TRT-2, no qual o São Paulo Futebol Clube foi condenado a indenizar seu ex-atleta Rodrigo Fabri exatamente por tê-lo afastado do grupo principal e o colocado para treinar longe dos colegas de trabalho. Na referida decisão, restou reconhecido que o clube cometeu ato ilícito ao abusar do poder diretivo do empregador, caracterizando situação de assédio moral.

Também é o caso do atleta Alexandre Teixeira Luz, que ajuizou uma ação contra o Ipatinga Futebol Clube, cuja ementa é transcrita a seguir:

ASSÉDIO MORAL. INDENIZAÇÃO. Revelando a prova oral que o autor teve seu treinamento limitado à parte física – sendo comandado, inclusive, apenas, pelo treinador físico -, e sendo certo que tal limitação inviabiliza, não só o crescimento, mas a própria manutenção do nível técnico do profissional do futebol, tem-se como configurado o assédio moral, em face do evidente exercício abusivo do poder diretivo, em detrimento do empregado (TRT-3, RO 0130200-72.2009.5.03.0034. Relator: Manuel Candido Rodrigues, Primeira Turma)

Os danos gerados pelo assédio moral na forma de afastamento do atleta

Entende-se que treinar em horário alternativo evidencia tratamento desigual em comparação com os demais atletas, implicando dano à dignidade ou integridade moral. No mais, o afastamento certamente prejudica o crescimento profissional do trabalhador desportivo, visto que pode comprometer sua qualidade física.

Além disso, com o afastamento do grupo principal, o atleta certamente ficaria em desvantagem dos demais colegas de profissão na abertura da janela de transferências, quando encerrado seu contrato. As suas formas técnica e física provavelmente não serão as mesmas de quando em atividade, sem contar o real perigo de perder no mercado sua notoriedade. No ponto, segundo João Leal Amado

O praticante desportivo precisa de se exibir, necessita de competir, sob pena de cair no esquecimento e/ou de ver desvalorizada a sua cotação no respectivo mercado de trabalho. (AMADO, 2002, p. 267)

Inclusive, o clube empregador sequer deve impedir o jogador de treinar com os demais colegas, dado que o jogador vive não só do seu corpo, mas também de sua imagem. O ato de encostar um jogador, impedindo que este desenvolva seus treinamentos com bola junto aos demais atletas, pode se enquadrar como situação humilhante tal como em outras formas de assédio moral.

Dessa forma, é necessário reiterar que a prática de assédio moral acarreta lesões à saúde mental da vítima. Essa conduta ilegal, voltada aos jogadores de futebol em suas relações de emprego diante dos clubes, pode interferir em seu rendimento dentro de campo. Ainda que o jogador seja indenizado, troque o seu ambiente de trabalho e prática desportiva e assine com outros clubes, seu psicológico pode permanecer afetado, acarretando até mesmo em uma aposentadoria antecipada.

Conclusão

No momento de determinar qualquer sanção contra atos de indisciplina, não deve existir receio na aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade. Exemplificando: se a presença do jogador de futebol junto ao elenco não coloca em risco ou não afeta o rendimento do grupo, não há razão para que seja isolado de seus colegas de time e trabalho. Ora, é preciso lembrar que o atleta profissional de futebol, assim como todos os outros atletas em busca de sua profissionalização, é um ser humano, independente da movimentação econômica que sua imagem traz ao clube.

Logo, a partir do momento em que o empregador trata a indisciplina de seu colaborador de forma irrazoável e desproporcional, aquele pode dar ensejo ao início de um ciclo vicioso que gera mais atos indisciplinares por parte do atleta que, consequentemente, ocasionará  mais desconforto ao empregador.

Quando o respeito entra em campo, todos ganham. É preciso que exista razoabilidade não apenas nas ações do atleta em cumprir o que estabeleceu junto ao clube, mas também nas ações da própria agremiação em caso de indisciplina cometida por algum de seus colaboradores. O futebol não é um mundo à parte das relações trabalhistas. Por meio da aplicação desta mentalidade, pelas palavras de Glenda Simões Ramalho almeja-se, desta forma, que o Brasil finalmente deixe de ser apenas o país do futebol, para também se tornar o país dos futebolistas (RAMALHO, 2016, p. 119).

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REFERÊNCIAS

AMADO, João Leal. Vinculação versus liberdade: o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo. Coimbra: Coimbra Ed., 2002, pág. 267.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 15. ed. São Paulo: LTr, 2016. p. 1363.

EMPRESÁRIOS DE FELIPE DENUNCIAM CORINTHIANS AO SINDICATO Terra, 2010. Disponível em: <https://www.terra.com.br/esportes/futebol/brasileiro-serie-a/empresarios-de-felipe-denunciam-corinthians-ao-sindicato,b373dc24bfe9a310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html%3E> Acesso em: 09, abril 2022.

RAMALHO, Glenda. O ASSÉDIO MORAL NO FUTEBOL PROFISSIONAL: MOBBING IN PROFESSIONAL FOOTBALL. FDUC – Teses de Mestrado, Coimbra, p. 1-128, 31 out. 2016.

TRT-2. Processo 00221.2007.069.02.00.2. Des. Rel. Neli Barbuy Cunha Monacci. Disponível em: http://trtcons.trtsp.jus.br/dwp/ consultas/acordaos/consacordaos_turmas_htm_v2.php?id=200 81106_20080735210_r.htm, acesso em 28/12/2020.

VIANA, M. T. Direito de resistência: possibilidades de autodefesa do empregado em face do empregador. São Paulo: LTr, 1996.

WANDELLI, L. V. Direito humano e fundamental ao trabalho: fundamentação e exigibilidade. São Paulo: LTr, 2012.

[1] Graduando do 10º semestre na Universidade São Judas e intercambista na Universidad Finis Terrae (Chile), onde também cursou Intercultural Negotiation e Español para Extranjeros. Pesquisador-fundador do Grupo de Estudos Direito e Desporto – São Judas. Diretor de Regionalização do Comitê de Jovens Arbitralistas (CJA/CBMA). Medalhista no IV Concurso de Artigos Científicos da Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados (CESPO) na categoria “Indústria do Esporte e Esporte de Rendimento”.

[2] Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Advogada Júnior inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Membra Pesquisadora do Grupo de Estudos Direito e Desporto da Universidade São Judas. Membra do Projeto de Extensão em Educação Política da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Ex-membra do Centro Acadêmico XVI de Abril. Partner na Septem Capulus – o maior centro de aperfeiçoamento jurídico do Brasil. Atua na linha dos Direitos Humanos, conveniada à Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Se especializando em Processo Civil pela plataforma APRENDA do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS), junto ao Professor Andre Mota.

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