Em meio ao atual ataque da Rússia à Ucrânia, a FIFA, entidade máxima de administração desportiva do futebol incluiu uma janela de transferência excepcional para registro de atletas ucranianos e russos.
Outra medida decorrente da intervenção militar russa foi a suspensão da RFS – União Russa de Futebol de todas as competições internacionais organizadas pela FIFA e pela UEFA, também noticiado pelo Lei em Campo.
A controvérsia gerada após a suspensão da federação russa, sobretudo quanto à previsão legal que respaldaria a decisão da entidade, foi amplamente debatida por diversos especialistas da área.
A despeito do mérito e da legalidade da medida, o reflexo de conflitos políticos no mundo do esporte não é novidade.
O uniforme escolhido pela seleção ucraniana para disputar a edição de 2020 da Eurocopa, que ocorreu em 2021, ilustrava o contorno do país, o que foi visto como uma manifestação política, porque mantiveram no desenho a península da Crimeia, invadida pela Rússia em 2014, e, em 2019, anexada ilegalmente ao território russo.
Na ocasião, a seleção ucraniana inseriu em seu uniforme frases emblemáticas da Revolução Ucraniana de 2014, que derrubou o presidente Viktor Yanukovich, e que foram extensivamente entoadas pela Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) e pelo Exército Insurgente Ucraniano (UPA) nas guerras para a independência ao longo das décadas de 40 e 50.
À época, a Rússia, aviltada com a manifestação política ucraniana, apresentou requerimento junto à UEFA para impedir o uso do uniforme pela seleção ucraniana.
Anos antes disso, na Copa do Mundo da Rússia, o atleta croata Domagoj Vida clamou “Glória à Ucrânia”, após a eliminação da seleção russa nas quartas de final, o que culminou em imposição de multa ao atleta, após a federação russa reclamar a situação à FIFA.
Muito antes disso, o futebol ucraniano já havia protagonizado reflexos de outros confrontos militares, como em 1922, enquanto a Ucrânia permanecia dominada pela União Soviética, sob o regime totalitário de Stalin. Décadas mais tarde, em 1941, a Ucrânia foi atacada e invadida por forças nazistas, em absoluto descumprimento ao tratado de não agressão assinado por Hitler e Stalin, em 1939.
Durante a ocupação nazista, o time ucraniano Dínamo de Kiev teve o seu nome modificado para F.C. Start, e competições de futebol foram organizadas como forma de entreter os cidadãos e alijar os abusos do absolutismo imposto.
O F.C. Start venceu partidas contra a equipe da unidade militar alemã (PGS) e contra Flakelf, equipe composta por membros da força aérea alemã – Luftwaffe, confrontando indiretamente a ideologia nazista “raças inferiores”.
Nas competições, os atletas ucranianos eram obrigados a declamar “Heil Hitler!”, e as disputas eram submetidas a inúmeros lapsos na arbitragem, sempre em favor dos alemães, e ainda assim, o ainda assim o F.C. Start venceu a equipe alemã Flakelf.
Com isso, as disputas ultrapassam a esfera esportiva e se tornam atos políticos e de resistência, e por isso, em represália, a Gestapo prendeu os jogadores que disputaram referida partida, sob a alegação de que faziam parte da polícia secreta soviética (NKVD). Considerados heróis pelos cidadãos ucranianos, alguns jogadores não sobreviveram às torturas nazistas, e outros, perderam a condição física para retornar às atividades esportivas¹.
Outra represália e opressão semelhante foi registrada na Copa do Mundo de 1938, quando a seleção da Áustria, classificada para participar da competição, deixou de comparecer na partida contra a Suécia, por ter sido anexada à Alemanha nazista poucos meses antes. A seleção alemã ilustrava em seu uniforme uma águia com a suástica. Um dos jogadores austríacos, escalado para compor a sua delegação alemã, perdeu a sua vida após se recusar a atuar pela equipe nazista.
Para além dos aspectos jurídicos, o movimento esportivo atuou diversas vezes como via para pressionar ações políticas. Inclusive, a via inversa também já se verificou em muitos casos, em que líderes políticos se valeram do esporte como forma de potencializarem o seu governo.
O ditador italiano Benito Mussolini, aliado de Hitler na Segunda Guerra Mundial, usou o bicampeonato da seleção italiana, em 1934, na Itália, e em 1938, na França como propaganda política a seu favor, assim como o fez também nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936.
Ainda à época da Guerra Fria, a União Soviética e os seus países-satélites valeram-se dos Jogos Olímpicos como forma de demonstrar a força e o poder regime socialista.
No Brasil o presidente general Emílio Garrastazu Médici, contava com ótimo cenário na economia nacional, com aumento de empréstimos no exterior, investimentos estrangeiros no país, boa oferta de empregos na indústria. Ainda assim, o verdadeiro mote de sua propaganda política foi a conquista do tricampeonato da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo no México, em 1970.
De uma forma ou de outra, esporte e política se misturam. Na Copa do Mundo do México de 1986, a Argentina venceu a seleção inglesa, com nítido tom de revanche à guerra envolvendo a posse das ilhas Malvinas (para os argentinos) ou Falklands, travada em 1982, contando com o famoso gol com as “mãos de Deus” de Diego Maradona.
Retornando às medidas impostas pela FIFA em relação ao atual confronto armado da Rússia contra a Ucrânia, o regulamento da entidade não dispõe sobre situações de guerra ou confrontos diplomáticos, nem prevê sanções à federação do país agressor. Questiona-se se eventual sanção pode se pautar em princípios esportivos como fundamento para decisão de represália à determinadas condutas.
Do ponto de vista jurídico, em tese, impõe-se tipificação prévia para tanto. Contudo, como há de ser, o esporte invariavelmente reflete as demandas de uma sociedade, e para tanto, se insere como componente indissociável a todas as questões sociais que a permeiam, direta ou indiretamente.
Crédito imagem: AFP
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1 – Dougan,Andy. Futebol & guerra: resistência, triunfo e tragédia do Dínamo na Kiev ocupada pelos nazistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
https://www.cafehistoria.com.br/futebol-e-politica-na-historia/
https://sites.duke.edu/wcwp/research-projects/football-and-politics-in-europe-1930s-1950s/
https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/23750472.2020.1723437