Foi publicada ontem uma interessante matéria jornalística que aborda o estatuto social do Flamengo, cujo título diz: “Prejuízo com pandemia em 2020 ameaça autonomia de diretoria do Flamengo para assinatura de contratos”. A notícia diz respeito ao artigo 146, III do estatuto social do clube, que tem a seguinte redação:
“Art.146. Fica automaticamente suspensa a autonomia do Conselho Diretor para celebrar acordos e contratos, inclusive empréstimos e antecipação de receitas, mesmo nos limites aprovados no orçamento de caixa, se:
(…)
III – comprovado, por meio dos balancetes trimestrais, que no resultado acumulado do exercício corrente, o superávit é inferior, ou o déficit superior, em três por cento do faturamento previsto no orçamento aprovado;
Parágrafo único. A perda de autonomia de que trata o caput deste artigo implica a necessidade de prévia aprovação de todos os acordos, contratos, empréstimos e antecipações de receita pelo plenário do Conselho de Administração, enquanto perdurarem as irregularidades referidas nos incisos anteriores.”
Não pretendemos tratar do caso concreto a que se refere à reportagem. No entanto, tomamos essa notícia como ponto de partida para jogar luz à importância do estatuto social no sistema de governança de uma entidade esportiva e no estabelecimento de mecanismos de controle interno. Antes, porém, faz-se necessária uma ressalva: tratamos especificamente de estatuto social tendo em vista que a maioria absoluta das entidades esportivas no Brasil constitui-se sob a forma de associação.
Associações são pessoas jurídicas de direito privado, constituídas pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos. O Código Civil estabelece, em seu artigo 54, elementos que devem necessariamente constar do estatuto social de uma entidade dessa natureza, tais como denominação, fins, sede, requisitos para admissão, demissão e exclusão de associados, direitos e deveres dos associados, fontes de recursos para manutenção da entidade, condições para alteração das disposições estatutárias e para a dissolução da associação. Em acréscimo a tais pontos, o mesmo dispositivo legal prevê outros dois aspectos indispensáveis ao estatuto social, ambos de grande relevância: (i) o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos e (ii) a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.
Vê-se que, de plano, o estatuto social inevitavelmente descreve a estrutura básica de governança de uma associação. Afinal, é nele que se definem os órgãos deliberativos da entidade, bem como as competências atribuídas a cada um – por exemplo, no caso do Flamengo funcionam (dentre outros órgãos deliberativos) o Conselho Diretor e o Conselho de Administração, ambos mencionados no artigo 146. Ademais, é no próprio estatuto que se costumam definir as regras gerais relacionadas à quantidade de membros que compõem cada órgão, como se dá a reunião, o quórum necessário para deliberação, dentre outros aspectos essenciais ao seu regular funcionamento.
Noutro plano, observa-se que deve constar do estatuto não apenas a forma pela qual a entidade é gerida, mas também de que modo seus administradores prestam contas aos associados. Esse último ponto é extremamente importante, uma vez que a obrigação de prestar contas costuma compor um sistema de controle interno da associação – no sentido de que assegura aos associados o poder de julgar as contas dos administradores e garante que um nível mínimo de informações concernentes à gestão da entidade (sobretudo sob o prisma financeiro) lhes seja divulgado.
Especificamente na seara esportiva, cumpre destacar o artigo 18-A da Lei nº 9.615/98, que encampa preceitos como gestão democrática, participação de atletas e transparência e enumera, em seu inciso VII, diversos elementos que devem constar do estatuto social da entidade esportiva. A alínea “d” do referido dispositivo legal refere-se expressamente à necessidade de estabelecimento de mecanismos de controle interno no estatuto social. É de se ressaltar que a observância do artigo 18-A é condição para certificação da entidade pela Secretaria Especial do Esporte (o que, no caso das entidades de prática desportiva, ganha relevo principalmente diante da lei federal de incentivo ao esporte e dos recursos de loterias descentralizados pelo Comitê Brasileiro de Clubes).
O mecanismo inserido no artigo 146 do estatuto social do Flamengo configura interessante e sofisticada ferramenta de controle interno, aderente ao que pretende a legislação em vigor. Claramente, seu objetivo é impedir (ou ao menos desincentivar) a prática de comportamentos indesejados (como, por exemplo, aqueles que resultem em déficit superior ao limite ali estabelecido) por parte de seus administradores. Para tanto, utiliza-se de outro órgão deliberativo, também regularmente constituído conforme disposições estatutárias, como instrumento limitador da autonomia do Conselho Diretor nessas hipóteses específicas.
Enfim, ainda que seja vasta a gama de mecanismos de controle interno passíveis de adoção pelos clubes brasileiros (e a própria existência de Conselho Fiscal, dotado de independência e autonomia para examinar a conformidade dos atos de gestão, pode ser suficiente em muitos casos), o dispositivo estatutário em tela pode ser tomado como um bom exemplo a ser observado por outras entidades esportivas. No entanto, é sempre imperiosa a ressalva: mais importante do que colocar no papel é, na prática, conferir eficácia aos mecanismos estabelecidos no estatuto social.