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Eu quero lutar! A obrigação contratual dos eventos de oferecer lutas aos atletas

INTRODUÇÃO

No inicio do ano, foi notícia o drama do atleta de MMA Gegard Mousasi, que, depois de ter o seu contratado adquirido pela PFL, estava há mais de um ano sem conseguir lutar.

O ex-campeão do Bellator e do Strikeforce alegava estar frustrado com sua situação depois que a PFL adquiriu o Bellator, já que ele não competia e não conseguia marcar lutas, alegadamente por ser “caro demais” para o evento.[1]

Devido à falta de combates, Mousasi declarou à mídia esportiva a intenção de acionar judicialmente a empresa, o que resultou em sua dispensa do contrato.[2]

Em relação à PFL, a última rodada de reclamações é encabeçada pelo atual campeão dos pesos galos do Bellator, Patchy Mix, pelo detentor do título dos pesos leves, Corey Anderson, e pelo campeão dos pesos penas, Patricio “Pitbull” Freire, que estão chateados com o que dizem ser uma falta de comunicação da cúpula da PFL sobre os próximos passos de suas carreiras.[3]

Depois que a PFL adquiriu o Bellator em novembro de 2023, a estratégia compartilhada pelo cofundador da PFL, Donn Davis, era que o Bellator continuaria com oito eventos da Bellator Champions Series ao longo do ano, todos com pelo menos duas lutas de campeonato.

Esse plano não se desenrolou como prometido. Apenas cinco eventos foram realizados esse ano, e apenas um incluiu lutas por título. Além disso, a marca Bellator agora parece estar sendo eliminada.

Ainda em novembro, outro atleta de MMA questionou a falta lutas em seu antigo evento. Foi o caso de Reinier de Ridder, que rompeu o vínculo com o evento ONE Championship e foi contratado pelo UFC.

Reinier declarou à imprensa esportiva o seguinte:

Isso é algo que eu sinto que tenho que fazer para outros lutadores – se você está pensando em assinar com o ONE Championship, não o faça. É simples assim. Você não deve. Não há nada lá. Não há lutas. Você está simplesmente errado se fizer isso, se assinar lá, é um erro grave.[4]

O ex-campeão deixou claro que o problema se resumia à atividade. Se o atleta é exclusivo da promoção[5] e não recebe lutas (e nem salário para esperar lutas), como ele fará para suprir suas necessidades?

A questão é que o contrato dos atletas aqui elencados obriga os eventos a lhes oferecerem lutas, como veremos.

A CLÁUSULA DE “OFERECIMENTO DE LUTAS”

No caso da PFL, a cláusula que obriga o evento a dar lutas aos atletas assim versa:

6) Remuneração e combates de desenvolvimento. O PFL pagará ao Lutador a seguinte compensação, de acordo com os termos deste Contrato:

a. Combates de desenvolvimento. A PFL pode providenciar, a critério exclusivo da PFL, que o Lutador participe de um ou mais combates de desenvolvimento de MMA durante o período de vigência, nos quais o Lutador será emparelhado conforme determinado pela PFL a seu critério e conforme aprovado pela Comissão Atlética. A PFL garante ao Lutador durante cada Temporada de Desenvolvimento, assumindo que todas as outras obrigações do Contrato tenham sido cumpridas, uma oferta de pelo menos dois (2) combates de MMA, que podem ser combates de MMA de Desenvolvimento ou combates de MMA da Temporada Regular, conforme determinado exclusivamente pela PFL. […][6] (tradução e grifo nossos)

Portanto, a PFL garante, ou ao menos deveria garantir, dois combates por ano (a duração de uma temporada completa da promoção) aos atletas.

Da mesma forma é a cláusula que obriga o ONE Championship a dar lutas aos atletas, se não, vejamos:

8) Condições especiais

[…]

ii. A partir da Data de Vigência e até a expiração ou pré-terminação do Prazo, a Empresa oferecerá ao Atleta a participação em 2 Partidas por período consecutivo de 12 meses.[7] (tradução e grifo nossos)

Como se vê, os eventos são contratualmente obrigados a dar lutas aos atletas, o que não têm feito, como vimos.

O EXCLUSIVO QUE NÃO LUTA

Nos EUA, meca da luta, cujo modelo contratual inspira os demais países em relação aos esportes de combate, há muito tempo, as cláusulas de não concorrência (ou cláusulas de exclusividade, como hoje são nomeadas no contrato) são ferramentas essenciais para as empresas que desejam proteger seus interesses quando os funcionários se mudam.

Em geral, esses acordos impedem que ex-funcionários se juntem a concorrentes ou iniciem negócios com os rivais por um período determinado após sua saída. Tradicionalmente, os acordos de não concorrência têm sido uma ferramenta essencial para proteger segredos comerciais, relacionamentos com clientes e outras vantagens competitivas.

Entretanto, o cenário das cláusulas de não concorrência está evoluindo. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma decisão histórica da Federal Trade Commission (FTC) proibiu recentemente essas cláusulas.[8] Essa mudança significativa intensificou as discussões em todo o mundo sobre a função e a percepção das cláusulas de não concorrência.

Embora não sejam considerados empregados, os atletas da luta têm em seus contratos tais cláusulas. O problema é que, quando assinam um contrato com algum evento, a maioria dos atletas não percebem que assinaram uma cláusula de não concorrência ou não entendem suas implicações.

Os atletas geralmente são mal informados sobre a existência e os detalhes de suas cláusulas de não concorrência, bem como sobre as implicações legais relevantes. Nesse sentido, os eventos poderiam considerar a adoção de medidas para garantir que detalhes importantes sobre a cláusula, como a duração e o escopo geográfico do contrato, sejam claramente explicados aos lutadores.

Nesse sentido, cumpre trazer à baila a restritiva cláusula de exclusividade no contrato dos atletas da PFL (onde Mousasi tinha contrato e onde os demais que estão reclamando da falta de lutas, como Patrício “Pitbull”, têm contrato) que os impediria de lutar em outros eventos:

Direitos promocionais e lutas de MMA.

3.1 O Lutador concede à PFL o direito exclusivo, irrestrito e mundial de promover e explorar lutas de MMA a serem realizadas pelo Lutador durante o Prazo em toda e qualquer mídia e de qualquer maneira.

3.2 O Lutador também concede à PFL um direito e licença mundial, irrevogável, livre de royalties, totalmente pago, perpétuo e sublicenciável para explorar a imagem do Lutador em toda e qualquer mídia, conhecida agora ou futuramente, em conexão com: (a) projeto, desenvolvimento, produção, marketing, publicidade, promoção, distribuição, venda, licenciamento, publicação, exibição e outra exploração de qualquer Luta(s) de MMA e Atividade(s) Promocional(is), bem como todo e qualquer direito relacionado a isso; (b) marketing, publicidade e promoção da PFL, e (c) projeto, desenvolvimento, produção, marketing, publicidade, promoção, distribuição, venda, licenciamento, publicação e outra exploração de qualquer produto(s) e/ou serviço(s) da PFL (coletivamente, os “Direitos”). A PFL pode permitir que os Direitos sejam exercidos por terceiros, incluindo, sem limitação, licenciados, patrocinadores e parceiros de distribuição.[9] (tradução e grifo nossos)

Essa exclusividade é a regra no mundo da luta, onde os eventos tratam os atletas como ativos, que são promovidos pela empresa conforme sua vontade.[10]

No caso de Patrício “Pitbull”, atleta exclusivo da PFL, que só lutou uma vez esse ano (março de 2024), estaria o evento em situação de quebra de contrato por ausência de boa-fé[11], já que a obrigação seria de oferecer ao atleta duas lutas ao menos por ano, e, ao que parece, o evento não convoca o atleta para lutar devido a sua bolsa de pagamento, alta para os padrões da promoção, mas o usa em seus materiais de divulgação, explorando a imagem do atleta, ainda que sem lhe pagar por isso.

A polêmica é o fato de o evento ter o atleta à disposição, de forma exclusiva, e não o convocar para luta. O evento alega que, como um ativo da promoção, o atleta poderia fortalecer a marca de algum rival se pudesse transitar livremente, sendo que o investimento na imagem do atleta que a promoção faz poderia acabar favorecendo a concorrência não fosse o atleta exclusivo.

Desta forma, essa exclusividade, que coloca o atleta num ócio forçado[12], também objetiva que o evento rival não tenha atletas à disposição para elevar sua imagem.

No passado, a Associação de Lutadores de Artes Marciais Mistas (“MMAFA”), em nome de seus membros, encaminhou uma carta de demanda ao EliteXC, promoção norte-americana de luta que havia declarado falência, solicitando a liberação de seus atletas dos contratos com o evento. Temendo um processo e não podendo oferecer lutas aos atletas, o evento assentiu.[13]

Considerando a evidente quebra de contrato por parte da PFL por ausência de lutas e os custos proibitivos de um litígio individual, o uso dessa carta novamente seria uma opção interessante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obrigação mercadológica da exclusividade, como relatado ao longo do texto, apresenta uma realidade nada vantajosa para o atleta. Os atletas são tidos como exclusivos pelos eventos, que não os convocam para lutar, mesmo que estejam disponíveis, sendo que os lutadores nada recebem para esperar lutas.

Para a maioria dos lutadores, a luta é a única fonte de renda. A falta de compromisso do evento com o atleta, quando não lhe oferece lutas, mas permanece explorando sua imagem, demonstra uma falta de equilíbrio contratual que parece só ocorrer nos esportes de combate.

Essa quebra de boa-fé por parte dos eventos é questão que precisa ser revista e desincentivada.

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[1] MARTIN, Damon. Gegard Mousasi lashes out at PFL over lack of communication, refusal to book him since buying Bellator. MMA FIGHTING, EUA, 19 abr. 2024. Disponível em: https://www.mmafighting.com/2024/4/19/24133795/gegard-mousasi-lashes-out-pfl-over-lack-communication-refusal-book-him-fight-since-buying-bellator. Acesso em: 20 out. 2024.

[2] RIGGS, Drake. ‘We now truly see how PFL treats their fighters:’ Gegard Mousasi released from PFL amid contract dispute. MMA FIGHTING, EUA, 23 maio 2024. Disponível em: https://www.mmamania.com/2024/5/23/24163585/we-now-see-how-pfl-treats-their-fighters-gegard-mousasi-released-from-pfl-amid-contract-dispute. Acesso em: 20 out. 2024.

[3] BOHN, Mike. Bellator champions Patchy Mix, Patricio ‘Pitbull,‘ Corey Anderson air frustration with PFL over lack of fights. MMA JUNKIE, EUA, 24 nov. 2024. Disponível em: https://mmajunkie.usatoday.com/2024/11/pfl-news-bellator-champions-frustrated-lack-of-fights-patchy-mix-pitbull-anderson.  Acesso em: 24 nov. 2024.

[4] https://www.mmafighting.com/2024/11/10/24292508/reinier-de-ridder-warns-fighters-not-to-sign-with-one-championship-interested-khamzat-chimaev-fight.

[5] Ver mais em: COSTA, Elthon José Gusmão da. Você é meu! O dilema dos atletas contratados mediante cláusula de exclusividade. Lei em Campo, Brasil, 2 set. 2024. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/voce-e-meu-o-dilema-dos-atletas-contratados-mediante-clausula-de-exclusividade/. Acesso em: 27 nov. 2024.

[6] BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Reclamação Trabalhista nº 1001036-50.2023.5.02.0462. Contrato de atleta da Professional Fighters League. Documento: Contrato de Trabalho (Contrato promocional exclusivo de luta em inglês – Manoel Sousa de Araújo) – 9385c86. Manaus, AM: 9ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho da Comarca de Manaus, 2023, p. 52. Acesso em 15 nov. 2024.

[7] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Manaus. Execução de Título Extrajudicial nº 0750699-31.2021.8.04.0001. Contrato de atleta do ONE Championship. Documento: Contrato. Manaus, AM: 9ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho da Comarca de Manaus, 2021. Acesso em 15 nov. 2024, p. 90.

[8] Mais em: COSTA, Elthon José Gusmão da. O fim da cláusula de exclusividade em contratos de atletas da luta. Consultor Jurídico, Brasil, 11 maio 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-11/ofim-da-clausula-de-exclusividade-em-contratos-de-atletas-da-luta/. Acesso em: 27 nov. 2024.

[9] BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Reclamação Trabalhista nº 1001036-50.2023.5.02.0462. Contrato de atleta da Professional Fighters League. Documento: Contrato de Trabalho (Contrato promocional exclusivo de luta em inglês – Manoel Sousa de Araújo) – 9385c86. Manaus, AM: 9ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho da Comarca de Manaus, 2023, p. 59. Acesso em 15 nov. 2024.

[10] O que é certo – e as estatísticas aí estão para demonstrá-lo -, é que na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América (EUA), países que iniciaram o processo de flexibilização dos direitos dos trabalhadores (e de onde vem o modelo que inspira esse tipo de contrato na luta), na realidade houve a precarização dos empregos, não obstante a versão oficial do aumento de seu nível. O que os fatos revelam é que as formas de subemprego, que estão sendo gestadas a partir da flexibilização dos direitos dos trabalhadores, conduzem a situações merecedoras de ampla repulsa por elementar senso de dignidade. LEDUR, José Felipe. A realização do Direito ao Trabalho. 1. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 102-103. Destaque nosso.

[11] Como o contrato da PFL tem o foro em Nova Iorque, EUA, e é regido pela lei norte-americana, forçoso esclarecer que, nos Estados Unidos, até o ano de 1960, em nenhum estado era registrada a existência de um princípio geral de agir segundo a boa-fé. Naquele ano entrou em vigor, sendo adotado nas legislações estaduais, o Uniform Commercial Code (UCC). Esse Código definiu o sintagma good faith como «honesty in fact in the conduct or transaction concerned» (em tradução livre: «efetiva honestidade na conduta ou no negócio jurídico em causa») e incluiu a secção 1-203, a qual enunciou: «Every contract or duty within this Act imposes an obligation of good faith in its performance or enforcement», a saber: todo o contrato ou dever no qual incida essa Lei impõe uma obrigação de boa-fé em seu desempenho ou execução. COSTA, Judith Martins. A Boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 3. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p.92.

[12] Ver mais em: COSTA, Elthon José Gusmão da. O ócio forçado no contrato de trabalho de atletas da luta. Lei em Campo, 23 set. 2024. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/o-ocio-forcado-no-contrato-de-trabalho-de-atletas-da-luta/. Acesso em: 29 nov. 2024.

[13] REDAÇÃO. EliteXC decreta falência. Super Lutas, Brasil, 21 out. 2008. Disponível em: https://www.superlutas.com.br/noticias/1607/EliteXC-decreta-falencia/. Acesso em: 30 nov. 2024.

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