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Eu sei, é difícil separar as coisas

Promessa é dívida. Começamos essa quarta-feira no Brasil do início do século XX pra provar que no futebol nada é por acaso – e, como diria Nelson Rodrigues, o pior cego é o que só vê a bola. Então senta, que lá vem história.

A exemplo do que ocorreu na Inglaterra, também por aqui o futebol aparecia como a modalidade de maior difusão entre os operários do país. Quanto mais tempo livre conquistavam, mais praticavam. Essa repercussão positiva levou algumas fábricas a patrocinarem times formados por funcionários das suas próprias linhas de produção, os quais eram chamados para participar dos jogos sob a promessa de receberem alguns privilégios como jornadas de trabalho mais curtas ou tarefas mais leves¹. O esporte, antes praticado livremente, passava a se tornar também objeto de direção.

Com o tempo, muitos passaram a ser contratados não por suas aptidões fabris – porque não chegariam a desempenhá-las –, mas pela habilidade esportiva.

Uma vez que, até meados da década de 30, a formalização de vínculo profissional de atleta não era permitida, os empregados permaneciam registrados em funções variadas nas linhas de produção, muito embora não as exercessem.

Você poderia se perguntar: por que proibir que pessoas fossem contratadas para jogar? Os donos da bola lhe responderiam que a manutenção do esporte como atividade amadora servia para “manter os traços da elite inglesa que o havia criado”, e evitar que fosse tomado por outros estratos sociais, principalmente, “operários iletrados e ex-escravos”². Inclusive, uma das origens atribuídas ao pagamento do “bicho”³, remete a esse período.

No início do século XX, ainda não era permitido remunerar atletas para jogar. Proibição que não impedia que, por baixo dos panos, algumas compensações pelas vitórias fossem pagas aos jogadores. Segundo se diz, há duas teorias famosas para o porquê do “bicho”. A primeira conta que os atletas poderiam receber, em troca de boas partidas, alguns animais como recompensa. A segunda, que, quando apareciam em casa ou na fábrica com algum dinheiro extra, e não poderiam dizer que esse veio do futebol, os jogadores diziam a quem quer que fosse que teriam ganhado no jogo do bicho.

Na confusão entre futebol e trabalho, vários são os exemplos de fábricas brasileiras que fizeram de seus pátios e arredores arenas esportivas famosas. No caso do antigo Parque Antártica, literalmente. O estádio que veio a se tornar a casa da Sociedade Esportiva Palmeiras foi, nos idos de 1900, parte do centro de distribuição da Companhia Antárctica Paulista (fundada em 1885 e que, a quem interessar possa, se dedicava à fabricação de gelo e embutidos antes de se tornar a enorme cervejaria que todos conhecemos).

Envolvendo a mesma fábrica, dessa vez longe da capital, o uniforme branco, vermelho e preto do Botafogo de Ribeirão Preto carregava as cores dos pinguins da marca cervejeira, e da cidade que se desenvolveu no seu entorno.

E o que dizer do time do Bangu? O prolongamento da Companhia Progresso Industrial do Brasil foi criado em 1904. Era a fábrica disfarçada de clube, o clube disfarçado de fábrica. O clube precisando da fábrica, a fábrica precisando do clube. Essa confusão também valia para os atletas. No Cruzeiro, conta-se que uma vez contrataram o Geraldo Domingos por 450 cruzeiros para jogar, e 350 para ser pedreiro. O jogador ajudou a construir a sede. Em qualquer desses casos, quando o time perdia, perdiam os funcionários, perdia o torcedor, perdia a cidade.

Talvez por isso, Mário Filho era enfático ao dizer que pouca gente se dá conta do que se exige de um jogador de futebol. Chegou a escrever: “Ele tem de representar um clube, uma cidade, um estado, a Pátria. O que se espera dele é que encarne as melhores virtudes do homem, no caso do brasileiro, as melhores virtudes do homem brasileiro”.

Quem sabe, até hoje, nos idos de 2018, o passar dos anos não nos fez imunes ao que a história deixou como herança. Afinal, é difícil separar as coisas quando a derrota do jogador é a derrota do torcedor, e, nesse momento, “perde mais o que não jogou do que o que jogou”.

……….
¹ GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país. São Paulo: Contexto, 2010. p. 51.
² GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país. São Paulo: Contexto, 2010. p. 54
³ Hoje⁴ o “bicho” é uma espécie de premiação paga a atletas pelo bom desempenho em partidas, classificação em campeonatos ou conquista de títulos.
⁴ FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro. Mauad, 2003.

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