Seis meses após haver sido aprovada a regra que limita o número de demissões de treinadores no Campeonato Brasileiro, muitos clubes vem se utilizando do expediente da rescisão “sob comum acordo”, para poder continuar contratando outros profissionais a fim detreinarem as suas equipes.
A utilização reiterada desse procedimento como forma de contornar a norma editada pela CBF, revela que ela está completamente dissonante da realidade. Entretanto, é de se estranhar o fato de não se ver um questionamento quanto à sua validade, que é a primeira pergunta a ser feita pelos operadores do Direito.
Infelizmente, ter um cuidado dessa natureza parece ser coisa do passado. Foi-se o tempo em que se perdiam horas com esse tipo de coisa. Poucos são aqueles que fazem uma reflexão sobre a compatibilidade de uma norma com o ordenamento jurídico em vigor. Simplesmente identificam a existência de uma regra e a cumprem. Ou procuram ludibriá-la…
Isso me faz lembrar a distinção feita por Hart, quando diz que uma regra pode ser obrigatória, (a) porque é aceita ou (b) porque é válida. Na primeira hipótese, ela se torna cogente para um grupo de pessoas pelo fato de que, através de suas práticas, esse grupo “aceita” a regra como um padrão de conduta, sem se preocupar em aferira sua compatibilidade com as normas de cunho superior.
Parece que os clubes se enquadram na primeira hipótese, como costuma acontecer com respeito ao cumprimento de inúmeros regulamentos desportivos que extravasam de suas competências.
Eu, porém, ainda sou das antigas. Teimo em pertencer à classe daqueles saudosistas que, antes de aplicar uma norma, verifica primeiramente se ela é válida.
Por falar em validade, recordo-me da vetusta Pirâmide de Kelsen. É possível que muitos de hoje talvez achem que se trate de mais um monumento egípcio em homenagem a algum faraó, mas é a estrutura concebida por um jurista alemão que demonstrou existiruma hierarquização das normas, onde a norma superior é fundamentadora da norma inferior, além de ser pressuposto de sua validade.
Da mesma forma, lembro-me do meu velho professorde Direito Constitucional, que dizia que a Constituição prevalecia sobre todos os demais documentos jurídicos. Ela, por sinal, diz logo no seu primeiro artigo que um dos fundamentos de nossa República é o da livre iniciativa, assim compreendida como a liberdade conferida às pessoas de poderem empreender suas atividades sem empecilhos de quem quer que seja.
É inerente ao livre exercício de qualquer atividade econômica que o empreendedor possa dispor do seu corpo funcional da melhor forma que lhe aprouver. Afinal, se é o empregador quem suporta os riscos do negócio, a ele deve ser dada a liberdade necessária para levar à frente a sua atividade.
Não é, portanto, compatível com a livre iniciativa, que uma entidade constranja o empregador a não demitir seus funcionários. Aliás, Isso implica, na prática, em forçar a criação de uma nova espécie de estabilidade. Só que a competência para definir a estabilidade dos empregados pertence à Consolidação das Leis do Trabalho, que regula o assunto no capítulo VII do Titulo IV.
Sou do tempo em que os empreendedores tinham plena liberdade de contratar e demitir, logicamente dentro da legalidade. Afinal, por que nenhuma empresa é obrigada a ficar com um funcionário que não deseje manter, enquanto que no futebol um clube é constrangido a permanecer com um treinador que não tenha correspondido às expectativas e esteja prejudicando a sua equipe?
Por falar em constrangimento, fico constrangido emlembrar que o Código Civil precisa igualmente ser respeitado por uma norma interna de uma associação desportiva.
Além de assegurar a liberdade contratual, o art. 421 do Código diz que “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”. Não é preciso ser um jurista experiente para perceber que impedir ou dificultar a demissão de um funcionário é uma intervenção máxima na liberdade contratual das partes, para dizer o mínimo…
Peço novamente desculpas ao leitor, mas essa minha mania ultrapassada de respeitar o que diz a lei me obriga a lembrar que existe a lei de liberdade econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa. Esse diploma normativo, de sugestivo nome, traz como um dos princípios a nortear a sua aplicação o da “liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas” (art. 2ºinciso I).
Mas todas as advertências legais parecem não surtir efeito. Ultimamente, o que dizem portarias, regulamentos e ordens internas de serviço são o que acaba prevalecendo. Esse negócio de respeitar a Constituição e as leis em vigor parece ter ficado lá pra trás.
Se ninguém questionou essas regras até hoje, presumo que o problema esteja mesmo é comigo. Talvez eu me encontre meio deslocado no tempo. É possível que a aplicação do Direito tenha mudado e eu não percebi.
Tenho receio de estar ficando meio careta.
Ou, para usar uma linguagem mais atual, acho quesou… Cringe.
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo