Quase dois anos após a sua morte, um relatório anatomopatológico concluiu que o ex-zagueiro do País de Gales, Keith Pontin, foi mais uma vítima de demência causada por repetidos traumas na cabeça durante sua extensa carreira de jogador. O caso se junta ao de outros muitos e reforça o alerta sobre a importância de tratar a concussão no esporte de maneira mais cuidadosa e séria, começando pela implementação de protocolos realmente efetivos.
“Nos dias de hoje, sabemos mais sobre a Encefalopatia Traumática Crônica (ETC) do que sabíamos há alguns anos. Há evidências de que não somente as concussões cerebrais, mas também os impactos na cabeça que não provocam sintomas (principalmente de forma repetida) aumentam o risco de o atleta desenvolver ETC no futuro. A concussão cerebral é caracterizada pela manifestação de sintomas (dor de cabeça, tontura, dificuldade de concentração, etc). Impactos na cabeça são relativamente frequentes no futebol, por exemplo, em disputa de bolas aéreas e no cabeceio de bola e nem sempre provocam sintomas. A discussão atual no futebol, e também em outros esportes, deve se concentrar não apenas em se garantir uma assistência de alta qualidade ao atleta que sofre uma concussão, mas também minimizar a exposição aos impactos na cabeça. Não precisamos mudar o jogo, mas podemos diminuir a exposição nos treinos. Isso já seria um bom começo”, avalia Hermano Pinheiro, fisioterapeuta PhD.
Pontin defendeu o Cardiff entre 1976 e 1983, disputando mais de 200 partidas com a camisa do clube. Ele foi diagnosticado com demência precoce em 2015, aos 59 anos, e morreu aos 64, em agosto de 2020. Em maio, um exame pós-morte realizado no ex-jogador descobriu que a causa de sua morte foi a ETC. Sua família sempre acreditou que sua condição estava ligada aos anos de múltiplas concussões durante os treinos e jogos.
A concussão passou a ser bastante discutida nos últimos meses por conta de sua gravidade e a constância que vêm acontecendo. O advogado e jornalista Andrei Kampff alerta para problemas jurídicos que grandes ligas do esporte podem enfrentar por conta das sequelas deixadas aos ex-atletas.
“Além da obrigação permanente de cuidar da saúde dos atletas, a situação traz um risco jurídico. A NFL já sofreu uma derrota bilionária não justiça, quando atletas ingressaram pedindo ressarcimento em função das sequelas proporcionadas pelas concussões. Isso trouxe aprendizado à força, e a NFL passou a investir mais na saúde dos atletas. A Fifa e o futebol também correm esse risco”, cita o colunista do Lei em Campo.
No ano passado, um grupo de ex-jogadores de rugby ingressou com uma ação judicial contra a RFL (Rugby Football League), órgão regulador desse esporte na Inglaterra, por considerar que a entidade não os protegeu dos riscos de danos cerebrais causados pela concussão.
Na época, o advogado especialista em direito desportivo e colunista do Lei em Campo, Vinicius Loureiro disse que “se as entidades que dirigem o rugby falharam em proteger a integridade física dos atletas, devem ser responsabilizadas. Mesmo que tenham elaborado um protocolo, caso esse protocolo não tenha sido suficiente para evitar as lesões e seus reflexos de longo prazo, é possível que tenham sucesso na ação”.
A concussão pode ser uma consequência de choques de cabeça. Ela se caracteriza pela presença de sintomas neurológicos sem nenhuma lesão identificada, mas com danos microscópicos, dependendo da situação, reversíveis ou não. Em esportes de contato, como o futebol e o futebol americano, esses choques são comuns.
NFL sofreu inúmeras ações
Devido a esses choques de cabeça, a NFL sofreu com uma avalanche de processos. Tudo teve início depois que o médico Bennet Omalu fez uma pesquisa profunda e concluiu que a doença degenerativa em vários ex-atletas de futebol americano, chamada ETC, havia sido causada pelos golpes que eles haviam recebido na cabeça durante suas carreiras.
Omalu passou a compartilhar seus dados com a NFL, que negou qualquer tipo de relação e os pedidos do médico por mais segurança aos atletas. No entanto, outros estudos reforçaram a tese da relação da concussão com a doença. Diante disso e entendendo ser vítimas de negligência da Liga, atletas recorreram à Justiça.
Baseada na ciência, a Justiça também entendeu que a NFL era responsável pela saúde dos atletas. A poderosa liga norte-americana chegou a pagar cerca de US$ 1 bilhão em processos e, então, finalmente decidiu criar novas regras de segurança, inclusive com o “Protocolo de Concussão”.
Como é no futebol?
No futebol, a concussão passou a ser um tema bastante discutido depois que familiares de ex-jogadores campeões mundiais com a Inglaterra, em 1966, revelarem o diagnóstico de demência em decorrência da prática do esporte.
O protocolo de concussão foi aprovado pela International Football Association Board (IFAB), órgão regulador das regras do futebol, em dezembro de 2020. De acordo com a FIFA, a medida pretende “priorizar o bem-estar dos jogadores” ao evitar duas concussões seguidas dos atletas e reduzir a pressão sobre a comissão técnica no momento da avaliação em campo.
Apesar da aprovação, a medida ainda é pouca adotada nos principais campeonatos de futebol ao redor do mundo. Das grandes ligas da Europa, apenas a Premier League (Inglaterra) e a Liga NOS (Portugal) resolveram implementar o protocolo nas últimas temporadas.
Se comparado com outros esportes, podemos dizer que o protocolo do futebol para casos de concussão é muito superficial. Ele não combate o problema de maneira efetiva. Para isso mudar, é preciso fazer mudanças nas regras. A substituição temporária, para uma melhor avaliação do atleta que sofrer choque de cabeça, foi uma decisão importante, mas ainda muito pequena.
“Algo semelhante (ao o que aconteceu com a NFL) deve acontecer com o futebol em algum momento. A partir do momento que a regra do jogo não apenas ignora os riscos de choques de cabeça como faz com que sejam parte do jogo (e consequentemente da rotina de treinos), as entidades que regulam o esporte se expõem a esse risco”, analisa Vinicius Loureiro.
“A pressão sobre o futebol tem aumentado nos últimos anos. Sabe-se que a abordagem da concussão cerebral ainda precisa melhorar bastante no futebol e estudos recentes mostraram que o risco de demência é maior entre ex-atletas de futebol profissional quando comparado à população geral, e que os zagueiros possuem um risco maior do que as outras posições. Há também uma grande discussão na ciência sobre os efeitos deletérios do cabeceio e sobre a importância de limitar o número de cabeceios nos treinos e nos jogos. Portanto, é possível que no futebol ocorram também ações judiciais em um futuro próximo”, encerra Hermano Pinheiro.
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo
Este conteúdo tem o patrocínio do Rei do Pitaco. Seja um rei, seja o Rei do Pitaco. Acesse: www.reidopitaco.com.br.