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Fair Play Trabalhista: competência e efetividade

Em 2015 a entidade máxima de administração desportiva brasileira – Confederação Brasileira de Futebol – instituiu o Fair Play Trabalhista.

A medida prevê que “o clube que, por período igual ou superior a trinta dias, estiver em atraso com o pagamento de remuneração, devida única e exclusivamente durante o campeonato, conforme pactuado em Contrato Especial de Trabalho Desportivo, a atleta profissional registrado, ficará sujeito à perda de 3 (três) pontos por partida a ser disputada, depois de reconhecida a mora e o inadimplemento por decisão do Superior Tribunal de Justiça Desportiva.” ¹

Verificado o descumprimento da obrigação trabalhista, o STJD concederá o prazo mínimo de quinze dias para que o clube possa regularizar a situação, o que, se assim o fizer, conseguirá afastar a sanção desportiva (perda de pontos por partida), mas ainda assim, o clube pode incorrer nas penas relacionadas ao descumprimento do respectivo regulamento.

É de referir que a punição de perda de pontos pode ser cumulada enquanto perdurar a inadimplência, ou, caso não haja mais partida a ser disputada pelo clube após o atleta ou seu representante comunicar o descumprimento salarial por escrito ao STJD, a sanção recai sob os pontos já obtidos.²

O rigor imposto pela CBF para coibir atrasos salariais dos atletas profissionais de futebol sobreveio do Fair Play Trabalhista, instituído em 2012 pela Federação Paulista de Futebol, nas Séries A1 e A2 do Campeonato Paulista, incluindo, em 2013, a Série A3.

Referida previsão instrumentalizou o sindicato da categoria correspondente para que, em 2013, pudesse apresentar notícia de infração que ensejou na denúncia em face de um mesmo clube, em defesa de dezoito atletas que sofriam com a intempestividade no recebimento de seus vencimentos. ³

A medida teria como objetivo precípuo o avanço às boas práticas de governança e responsabilidade financeira dos clubes. Contudo, sob a ótica operacional do direito, deve-se questionar a efetividade dessas regras.

Para tanto, vale destacar casos recentes envolvendo discussões sobre a aplicabilidade do Fair Play Trabalhista, tanto para facilitar a compreensão dos conceitos e definições jurídicas abordados acima, como para elucidar os obstáculos na efetividade da medida, e instigar a análise e ponderar melhores formas para se obter o intento medular almejado.

Recentemente, diversas notícias sobre a inadimplência trabalhista do Cruzeiro Esporte Clube geraram indagações do porquê não houve punições em desfavor do grande clube cruzmaltino.

A resposta encontra-se no texto do que dispõe o art. 17, §1º do Regulamento Específico da Competição – Campeonato Brasileiro Série B – 2021, o qual, dentro do capítulo que trata sobre as disposições financeiras, estabelece que “ocorrendo atraso, caberá ao atleta prejudicado, pessoalmente ou representado por advogado constituído com poderes específicos, ou, ainda, por entidade sindical representativa da categoria profissional, formalizar comunicação escrita ao STJD, a partir do início até 30 (trinta) dias contados do encerramento do campeonato, sem prejuízo da reclamação trabalhista, caso a medida desportiva não surta o efeito e o clube permaneça inadimplente.” 4

Consoante se extrai do regulamento da entidade de administração do desporto, incumbe ao próprio atleta, ainda que por meio de seu representante, o dever de noticiar a mora do clube em suas obrigações trabalhistas.

Evidente que a necessidade de o atleta denunciar o seu clube empregador, ou autorizar que o seu representante o faça, o expõe penosamente perante os dirigentes e à torcida.

Além disso, a punição pela perda de pontos do clube recai e afeta negativamente o próprio atleta e seus colegas integrantes da agremiação desportiva.

Sem contar outro ponto crítico do Fair Play Trabalhista, que muito embora tenha sido aprovado por 60 mandatários dos clubes das divisões A, B e C,5 coloca em risco a estabilidade da competição, uma vez que há previsão para que a sanção seja aplicada mesmo após o fim do campeonato em que tenha ocorrido a inadimplência trabalhista, fato este que desordenaria toda a tabela classificatória.

Singularmente, na conjuntura que envolve o Cruzeiro, muito embora o Sindicato do Atletas de Futebol do Estado de Minas Gerais (SAFEMG) tenha manifestado apoio aos jogadores do clube, nada pode ser feito sem a autorização dos atletas e outorga de seus interesses aos seus representantes.

A despeito da concepção das regras de Fair Play Trabalhista demonstrar aptidão ao satisfatório imperativo de responsabilidade financeira dos clubes, infere-se que a efetividade de sua aplicação resta prejudicada pela forma como deve ser operada.

Parece razoável a apreensão e cautela dos atletas em colocar o clube, que já passa por forte pressão da torcida, diante da possibilidade de perda de pontos pela inadimplência salarial.

Contudo, sem a legítima provocação do titular do direito não há como a notícia da infração ser submetida à Procuradoria do STJD de forma juridicamente válida, e apta para que o órgão promova a denúncia perante a Corte Desportiva.

Ainda quanto à forma a fazer valer as regras do Fair Play Trabalhista, vale destacar mais um caso recente, onde se demonstra que além da exigência de a notícia partir do atleta ou de seu representante, esta deve cumprir critérios estabelecidos no Regimento Interno do STJD.

Referido instrumento, em seu art. 54 e seguintes, na “Seção II – Do processo de notícias por irregularidade contratual”, impõe que a comunicação de infração contratual formulada pelo clube, atleta ou entidade sindical deve ser encaminhada inicialmente ao Vice-Presidente do Tribunal, que ao recebê-la, conferirá ao inadimplente imputado o prazo de cinco dias para apresentação de defesa prévia.

Se o objeto da notícia subsistir, portanto, verificada a efetiva ocorrência da infração, e decorrido o prazo da defesa, ou, caso a defesa sequer tenha sido apresentada, o Vice-Presidente enviará o processo para que o Procurador proceda à denúncia.

Esta formalidade deixou de ser observada no processo que tramitou perante a Justiça Desportiva, cuja denúncia foi oferecida pela Procuradoria do STJD sob o respaldo da notícia de infração apresentada por um atleta do Clube Náutico Capibaribe.

Curioso destacar o entendimento da 03ª Comissão Disciplinar, que declarou inepta a denúncia, sob fundamento de que “pelo fato de tratar de matéria alheia à competência dessa justiça especializada”.

A denúncia versava sobre o descumprimento de obrigação legal e regulamento específico de competição, na forma do art. 184 do CBJD (quando o agente pratica duas ou mais infrações ao praticar mais de uma ação ou omissão, ocasião em que as penas se aplicam cumulativamente), sob fundamento de inadimplência dos salários relativos aos meses de outubro e novembro de 2020, além das parcelas de Fundo de Garantia por Tempo e Serviço.

Em contraposição ao voto da comissão julgadora, o acórdão do Pleno do STJD ratificou a competência do Superior Tribunal de Justiça Desportiva para atuar na “apuração e responsabilização desportiva” do adimplemento das obrigações trabalhistas inseridas nas normas regulamentares.

Por fim, o pleno do STJD declarou vício formal na notícia de infração, em razão desta ter sido encaminhada ao Procurador-Geral do STJD, e sob este critério, anulou a decisão da 03ª Comissão Disciplinar

Nos dois exemplos citados, verifica-se a perfeita compatibilidade da norma regulamentadora com o caso concreto. Tanto os atletas do Cruzeiro, como o atleta do Clube Náutico Capibaribe poderiam se valer das regras do Fair Play Trabalhista estabelecido pela entidade de administração desportiva.

Especificamente no segundo caso, faltou atenção à necessária formalidade, e o atleta pode ainda se socorrer das medidas para obter o correto pagamento de seus vencimentos.

No caso do Cruzeiro, a situação evidencia a falta de efetividade da medida. A objetividade jurídica do Fair Play Trabalhista versa sobre a proteção dos atletas que sofrem com a irresponsabilidade na gestão financeira de seus clubes empregadores.

Entretanto, para que o Fair Play Trabalhista seja exequível, a estrutura vigente precisa ser revista, aperfeiçoando as estratégias a fim de assegurar com efeito o bem jurídico tutelado, sem que isso onere ou prejudique o atleta, ainda que indiretamente.

Deve-se arquitetar uma sistemática que garanta o tempestivo pagamento de seus vencimentos, em coerência com a forma como estes direitos serão reclamados, e para tanto, imprescindível o diálogo entre a entidade de administração desportiva, os representantes dos atletas e as agremiações desportivas, e um necessário balanço dos pontos de oportunidade e acertos da medida por ora vigente.

……….

  1. https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210330135744_771.pdfhttps://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210330135744_771.pdf (art. 17, caput)
  2. Atualmente, o Fair Play Trabalhista estabelecido pela Federação Paulista de Futebol encontra-se previsão no art. 26 do Regulamento Específico do Campeonato Paulista de Futebol Profissional Série A1 – 2021.
  3. https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210330135744_771.pdfhttps://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210330135744_771.pdf (§§´s 3º e 4º, art. 17)
  4. https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210330135744_771.pdfhttps://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210330135744_771.pdf (§ 1º, art. 17)
  5. à unanimidade pelos 20 clubes da série A, em reunião do Conselho Técnico datada de 2 de março de 2015”, §5º art. 18 do Regulamento Específico da Série A do Campeonato Brasileiro

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