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FIA, FIFA e o Direito da União Europeia (parte 1)

Nas últimas duas semanas, nossa coluna detalhou os principais aspectos relacionados ao novo Regulamento Financeiro da Fórmula 1. Conforme mostramos, esse regulamento editado pela FIA (Federação Internacional de Automobilismo) impõe limitações às despesas das equipes que disputam o campeonato da categoria. Assim, em alguma medida criam-se restrições à livre circulação de capitais pelos competidores.

Noutro plano, o assunto do momento no esporte mundial é a recente manifestação da FIFA, endossada pelas seis confederações continentais (dentre as quais a UEFA e a CONMEBOL), contrária à criação de uma Superliga por alguns dos principais clubes europeus. Na nota, a FIFA enfatiza que essa competição não seria reconhecida pela entidade, e que clubes e atletas que dela participassem ficariam impedidos de atuar em torneios organizados pela própria FIFA ou pelas confederações continentais – por exemplo: Copa do Mundo (no caso dos jogadores), UEFA Champions League, CONMEBOL Libertadores…

À primeira vista, os dois primeiros parágrafos parecem absolutamente desconectados entre si. Um trata de automobilismo, outro de futebol; o primeiro tem como base um regulamento em vigor, enquanto o segundo parte da reação ao que (ao menos por enquanto) se limita ao campo da especulação. Mas na verdade, há um elemento historicamente importante para o direito desportivo que une os dois temas: a aplicação do direito da União Europeia.

De conflitos entre o direito da União Europeia e a Lex Sportiva já decorreram destacadas alterações a normas emanadas das federações internacionais. A mais emblemática delas se deu no “caso Bosman”: a partir de uma demanda judicial promovida pelo jogador de futebol belga Jean-Marc Bosman, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) julgou que o “passe” (conforme então previsto nas normas da FIFA) era contrário ao direito fundamental à livre circulação de trabalhadores, previsto no artigo 45º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Então a FIFA modificou substancialmente seu sistema de transferências, extinguindo a possibilidade de um atleta ficar vinculado ao clube contra a sua vontade mesmo após findo o seu contrato de trabalho.

A princípio, é possível entender que o Regulamento Financeiro da FIA também contraria uma das liberdades fundamentais da União Europeia: a livre circulação de capitais. No entanto, isso não significa necessariamente que suas normas seriam consideradas inválidas. A jurisprudência do TJUE consolidou-se já há alguns anos no sentido de que normas da Lex Sportiva podem ser válidas mesmo que contrariem o direito da União Europeia, desde que existam para atingir objetivos legítimos e sejam adequadas e proporcionais para alcançá-los.

Não por acaso, o Regulamento Financeiro da FIA expressamente aduz em seu artigo 1.3 que “é desenhado para atingir os seguintes objetivos: (a) promover a competitividade do campeonato; (b) promover um campeonato esportivamente mais justo; e (c) assegurar a sustentabilidade e a estabilidade financeira das equipes de Fórmula 1 a longo prazo”. Inteligentemente, o próprio texto da norma contempla a “defesa” do regulamento diante de eventual afronta ao direito da União Europeia. Os objetivos descritos, à primeira vista, soam legítimos e a limitação de custos parece uma medida adequada e proporcional para atingi-los. Logo, o regulamento poderia ser aprovado no “teste de proporcionalidade” consagrado pelo TJUE.

A propósito, o TJUE não é a única instituição cujas competências autorizam o exame de aderência de normas esportivas à legislação da União Europeia. A Comissão Europeia também pode fazê-lo, e nos últimos anos um caso inicialmente analisado por ela ganhou relevância.

Trata-se de uma reclamação feita por dois patinadores de velocidade perante a Comissão em 2014. À época, a ISU (Federação Internacional de Patinação) estabelecia regras de elegibilidade segundo as quais os atletas não poderiam participar de quaisquer eventos não organizados ou autorizados pela própria ISU ou por federações nacionais a ela filiadas – sob pena de ficarem impedidos de tomar parte de competições realizadas por tais entidades. Os patinadores então levaram o caso à Comissão Europeia alegando que essa restrição violava preceitos da legislação concorrencial da União Europeia; como resultado, no final de 2017 a Comissão Europeia deu razão aos atletas e determinou que a ISU promovesse alterações em seus regulamentos. Ao fundamentar sua decisão, o órgão aplicou o “teste de proporcionalidade” e concluiu que, além de violar normas concorrenciais da União Europeia, as regras de elegibilidade visavam tão somente interesses econômicos, não se constatando objetivos legítimos.

No fim de 2020, o TJUE ratificou a decisão da Comissão Europeia, mas não apenas por isso esse caso é tão importante. Sua relevância decorre principalmente da relação com uma das principais características do sistema esportivo transnacional: o monopólio. E disso trataremos na próxima semana, abordando a reação da FIFA ao projeto de uma superliga de clubes. Até lá!

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