“Haveria alguém além de mim, o criador, capaz de acreditar, a menos que convencido pelos sentidos, na existência do monumento vivo à presunção e à ignorância imprudente que lancei ao mundo?”¹
A FIFA, criadora da proibição, repensou a possibilidade da participação dos jogadores, a criatura, em seus direitos econômicos². No último dia 15, o diretor jurídico da entidade, Emílio Garcia Silvero, publicou em suas redes sociais que em breve os jogadores de futebol não serão mais impedidos de deter percentuais de suas transferências futuras.
Em 2014, com a criação do artigo 18ter do Regulamento de Status e Transferência de Jogadores, a federação internacional proibiu toda e qualquer pessoa, seja física, seja jurídica, que não está no eixo de transferência de um jogador no sistema (clube-clube), de figurar como parte beneficiária dos resultados econômicos de uma transferência de um jogador³, sendo terceiro. Os terceiros são conhecidos no sistema do futebol pela sigla TPO, iniciais do termo inglês Third Party Ownership⁴.
Desde então, até o presente momento, o referido regulamento⁵ aponta o conceito do termo terceiro:
14. Terceiro: parte alheia aos dois clubes entre os quais se transfere um jogador ou a qualquer dos clubes anteriores em que o jogador esteve inscrito previamente. (tradução e grifo nosso)
Assim, apenas os clubes envolvidos em uma transferência de jogador, ou os clubes anteriores deste, não são considerados terceiros para a negociação dos direitos econômicos, o que forçosamente aponta para a consideração do jogador como um terceiro. Inferimos que, para o sistema FIFA, atualmente, é o contrato de transferência de um jogador, firmado entre clubes, que deve ser considerado base para a análise de quem é ou não um terceiro, e não o contrato de labor desportivo. Todavia, isso irá mudar.
“O destino era potente demais, e suas leis imutáveis haviam decretado minha completa e terrível destruição.”⁶
Ainda que seja possível compreender o dilema existente entre criadora e criatura, e que supostamente será benéfica essa mudança para os jogadores e para o mercado futebolístico, inspirados pela clássica obra Frankenstein, romance de terror gótico que relata a história de um estudante de ciências naturais que constrói um monstro em seu laboratório, apontamos a necessidade de reflexão sob a luz dos princípios gerais do Direito, da ética e da moral.
A partilha dos direitos econômicos do jogador invariavelmente provoca no novo titular desses direitos a pretensão de que o jogador não cumpra seu contrato de trabalho desportivo, que tem prazo determinado, até o fim, sob pena de esse titular nada receber. E sendo o jogador o beneficiário final de determinado montante pecuniário devido por ele próprio ao clube pelo dever de compensar ou indenizar o não cumprimento contratual, por uma cessão por empréstimo ou definitiva, haveria conflito de interesse? Ainda que juridicamente possa vir a ser possível, seria ética e moralmente aceitável?
A situação é no mínimo embaraçosa para o jogador. O futebolista, que foi considerado apenas moeda na era do “passe” e que consolidou a imagem de trabalhador na era Bosman, inclusive com a bênção da criadora, pode voltar a viver uma crise de identidade. Ao olhar no espelho, poderá ver sua imagem partilhada, desfigurada e com remendos, sendo pintado como monstro, em especial pela torcida e pela mídia, e, ainda que lucre, lamentará…
“Houve um época que eu alimentava falsas esperanças de encontrar seres que, perdoando minha aparência externa, me amariam pelas qualidades excelentes que eu seria capaz de demonstrar.”⁷
……….
¹ Shelley, Mary. Frankenstein ou o Prometeu Moderno. Londres, Lackington, Hughes, Harding, Mavor & Jones, 1818.
² MARCONDES, Luiz Fernando Aleixo. Direitos econômicos de Jogadores de Futebol: Lex Sportiva e Lex Publica. Alternativa Jurídica às restrições de compra e venda de direitos sobre o jogador. Curitiba: Juruá, 2016, p. 118-119… “condicionais direitos à prestação de indenização, pela extinção antecipada unilateral do contrato laboral desportivo ou de formação sem justa causa por parte do jogador, e de compensação, para a cessão em definitivo (distrato do labor desportivo ou contrato de formação somado ao contrato de transferência) ou para a cessão por empréstimo (suspensão do labor desportivo ou formação desportiva somada ao contrato de transferência), visando à transferência, direitos capazes de gerar benefícios econômicos.”
³ THE CENTRE FOR THE LAW AND ECONOMICS OF SPORTS; KEA EUROPEAN AFFAIRS. Op. cit., p. 91. “In general, a player registered to play in a club is part of the club’s assets. More and more often, third parties (agents, investors, investment funds) buy a stake in the future value of a player on the transfer market. They acquire an economic right over the career of a professional player. Third Party Ownership (TPO) can be described as a financial mechanism that helps clubs acquire promising players. It constitutes a new source of revenues for clubs and helps to reduce the acquisition cost of a player while it also limits the capacity of clubs to generate transfer revenues”.
⁴ Ibidem, p. 64. “TPO refers to the practice for a third party (i.e., not the club to which the player is an employee or self- employed) to acquire rights on the future transfer value of players. Third-party ownership practices are common in Latin America and become more widespread in Europe. It is currently one of the most controversial issues considered by sport governing bodies as it goes against the principle that a player is attached economically to a given club”.
⁵ Regulamento de Status e Transferência de Jogadores – FIFA
⁶ Shelley, Mary. Frankenstein ou o Prometeu Moderno. Londres, Lackington, Hughes, Harding, Mavor & Jones, 1818.
⁷ Ibidem.
……….
Foto: reprodução/TV Globo.