O esporte não se separa da proteção de direitos humanos. Mesmo assim, ele insiste em tomar caminhos complicados. A escolha do Qatar como sede da Copa do Mundo segue apresentando problemas para a Fifa. A entidade já se livrou de um processo milionário de um empregado bengali que denunciou trabalho escravo no país, mas agora é um grupo de organizações não governamentais que está buscando uma indenização da entidade maior do futebol mundial.
Foi destaque no Lei em Campo a notícia de que o grupo – incluindo a Anistia Internacional, Human Rights Watch, Football Supporters Europe e a Federação Internacional de Trabalhadores – esta cobrando da Fifa um pagamento de cerca de US$ 440 milhões (R$ 2,1 bilhões) a trabalhadores imigrantes que tiveram seus direitos humanos violados durante as obras para a Copa do Mundo do Qatar, prevista para ser realizado em novembro deste ano.
O grupo enviou nesta semana uma carta para o presidente da Fifa, Gianni Infantino, dizendo que há evidências documentadas da falta de proteção a esses trabalhadores ao longo dos anos de preparativos para a competição e indicando que US$ 440 milhões seria o mínimo para um acordo extra-judicial.
Por mais que as denúncias sejam graves e de fácil comprovação, dificilmente a Fifa será responsabilizada por um problema de relação trabalhista no Qatar, que segue suas próprias leis.
Isso já foi discutido inclusive judicialmente quando um operário buscou a justiça em função das condições de trabalho no país asiático.
Ele foi mais uma das vítimas do regime trabalhista chamado de “Kafala”
O Kafala
Os trabalhadores de outros países que chegavam ao Qatar eram submetidos a um sistema trabalhista histórico chamado Kafala. Nele são estabelecidas relações entre cada trabalhador e seu “patrocinador”, normalmente o empregador.
De acordo com esse sistema, o empregado virava refém do empregador. Ele ficava sujeito à autorização do patrão para realizar diversas atividades, como alugar imóvel, sair do país, trocar de emprego. Além disso, o trabalhador tinha o passaporte retido por esse “patrocinador”, que se negava a fornecer vistos para saída do país. Se insistisse, o próprio empregador poderia pedir a prisão do empregado..
Nadim Alan foi um operário bengali que se rebelou contra as condições de trabalho no país e decidiu entrar com uma ação judicial contra a entidade que manda no futebol mundial, com o apoio de vários sindicatos. Ele pedia que a federação agisse contra as frequentes violações de direitos humanos, garantindo liberdades fundamentais aos trabalhadores migrantes que trabalhavam em obras para a Copa. .
Em decisão de janeiro de 2017, o Tribunal Federal de Zurique entendeu que apenas o Estado soberano do Qatar seria capaz de promover mudanças no sistema de trabalho que impedissem violações a princípios de direitos humanos naquele país. Também entendeu que a Fifa não tinha nenhuma relação comercial com Nadim Alam, afastando assim a jurisdição do tribunal para análise da matéria.
Importante destacar que a corte europeia não disse que a Fifa não poderia ser responsabilizada pelos maus-tratos aos operários e violações a direitos humanos, já que ela decidiu com base nos critérios de jurisdição do tribunal, deixando de se manifestar com relação ao mérito.
Como explicou o professor Vinícius Calixto no livro “Lex Sportiva e Direitos Humanos”, “o caso expõe uma situação em que uma entidade privada com atuação transnacional (Fifa) foi demandada perante o ordenamento jurídico estatal ao qual está vinculado (Suíça), em decorrência de violações ocorridas em outra ordem estatal (Qatar). Ademais, nota-se que a ação foi movida por um cidadão bengali, em conjunto com entidades sindicais de Bangladesh e Holanda”.
A vitória de Nadim
Mesmo com a derrota no Tribunal, o caso de Nadim também ajudou na proteção de direitos humanos. Movimentos de direitos humanos, patrocinadores da entidade, sindicatos, estudiosos do esporte, todos se juntaram em um grande movimento condenando o trabalho que levantava estádios para o principal evento da entidade.
A irritação sofrida acabou provocando a federação a ter uma postura mais incisiva frente às autoridades cataris para que revogassem o sistema Kafala. E mais, a entidade criou uma comissão para inspecionar as obras para o Mundial, mudou Estatuto e implementou uma política de direitos humanos.
Mesmo assim…
A denúncia de agora só confirma que a realidade ainda está longe daquela determinada pelas políticas de defesa de direitos humanos. E se juridicamente as chances da Fifa ter de indenizar os operários são pequenas, a denúncia pode – e deve – provocar novas reflexões na entidade maior do futebol.
Se os dirigentes esquecem a natureza do esporte, a pressão organizada de atletas, patrocinadores, opinião pública e coletivos globais precisa fazer com que eles se lembrem.
E da próxima vez que for preciso escolher entre princípios e dinheiro, à Fifa só reste um caminho a seguir.
Crédito imagem: Reuters
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