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Final será mesmo em Santiago? Veja como crise chilena afeta esporte

A final da Libertadores entre Flamengo e River Plate pode mudar de local. A crise no Chile é grave.

Sim, não foi por causa do aumento de 30 pesos chilenos (0,17 reais) que o Chile incendiou. A crise tem raízes muito mais profundas e sérias. Uma catástrofe civil que está relacionada, principalmente, à permanente desigualdade social que atinge muitos países do mundo, e todos da América do Sul.

Tanto que movimentos semelhantes apareceram pelo planeta nos últimos dias, na Ásia, África, Europa, como também pelos lados de cá. Em idiomas diferentes, a mesma revolta. Em todos os lugares, os manifestantes enxergam um modelo econômico que tem pedido muito e entregado pouco.

Ricos ficando mais ricos. Pobres perdendo direitos, e se conscientizando de que os degraus da sonhada escalada social aumentaram.

São poucos os lugares no mundo em que a turma 1% mais rica da população fica com 25% da renda total do país. Brasil e Chile são os dois únicos países da América Latina.

No Chile, o movimento já fez com que o governo conservador de Sebastián Piñera cedesse em muitas das suas ideias,  propondo uma série de medidas em diferentes áreas, desde o aumento do salário mínimo e das pensões de aposentadoria, até o congelamento de preços da luz e do metrô.

Os próximos dias serão decisivos para saber qual será a resposta popular. A cada dia com tumulto, a cada novo incêndio no Chile, maior é a chance de Santiago perder também a final da Libertadores. A Conmebol já estuda alternativas, trabalhando com a hipótese da crise continuar. e ela não quer ser surpreendida. Mas tem também questões jurídicas importantes para resolver em caso de troca.

Veja o relato de Cauan Biscaia, jornalista brasileiro que mora ha 8 anos no Chile. Ele conta também como a crise tem afetado o esporte no país.

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CHILE: RESTRIÇÃO DE LIBERDADES, INCERTEZA DE LIBERTADORES

Uma panela de pressão que explodiu. A gota d’água que derramou o copo. Essas foram as frases que mais ecoaram entre os chilenos para justificar os motivos que levaram milhares de pessoas saírem às ruas para protestar contra o modelo econômico neoliberal que rege o país dos Andes há 39 anos, respaldado pela Constituição criada por Augusto Pinochet, herança do golpe militar de 1973. No começo foi apenas uma insatisfação quase conformista e resmungada pelo aumento da luz em 9,2%, mas os ânimos inflamaram realmente depois que o Ministério de Transporte anunciou o aumento de 30 pesos chilenos (cerca de R$0,17) na tarifa do metrô de Santiago. Com o estopim em erupção não demorou mais que uma semana para emergir um movimento de revolta contra o governo do presidente Sebastián Piñera, e em uma situação quase similar ao movimento que balançou o Brasil em 2013 com o slogan “não são só 20 centavos”, essa alça no transporte público desencadeou uma das maiores rebeliões sociais no Chile em tempos de democracia.

“Não são 30 pesos, são 30 anos”, dizem os manifestantes. Os motivos vão muito além: desigualdade social, baixos e estancados salários, saúde e educação privatizadas, sistema de previdência deficitário e uma insatisfação quase unânime pela classe política, seja esta de direita ou de esquerda. Como tem sido de costume nos últimos 13 anos, os catalisadores dos protestos foram os estudantes, que nesta oportunidade se organizaram para evadir catracas em bando, deixando seu recado ao Governo e levando consigo uma horda de seguidores injustiçados. O prenúncio do caos se concretizou no dia 18 de outubro, quando esta sexta-feira se transformou em uma apocalíptica jornada de incêndios em dezenas estações do metrô, supermercados, bancos e até um edifício quase completo. Desconsertado, o presidente chileno convocou a Lei de Segurança de Estado, e minutos depois, ao ver que a situação se descontrolava cada vez mais, decretou Estado de Emergência e o posterior Toque de Recolher, medida que um poder executivo chileno não tomava desde o forte terremoto de 2010, e a anterior ditadura que durou 27 anos. Um cataclismo social que começou em Santiago, mas rapidamente se espalhou ao longo do extenso país, se agravando ainda mais pela restrição de liberdades com a presença de militares nas ruas, recuperando épocas sombrias de poucas décadas atrás.

Nessa mesma sexta-feira, a Asociación Nacional de Fútbol Profesional (ANPF) determinou a suspensão da 25ª rodada do Campeonato Nacional, na eminência do clássico entre Universidad Católica e Colo Colo, que poderia consagrar os cruzados como bicampeões chilenos. Inicialmente, a decisão afetou somente a primeira divisão, porém, devido ao agravamento e massificação dos protestos, a medida atingiu todas as divisões e categorias do futebol local. Quatro dias depois, a entidade confirmou uma nova suspensão para o fim de semana seguinte, aumentando incertezas sobre outra instância de alta importância e convocatória na capital chilena: a final única da Taça Libertadores da América, marcada para 23 de novembro. A um mês da decisão, a Confederação Sul-Americana de Futebol confirmou que o jogo entre Flamengo e River Plate será mesmo no Estádio Nacional de Santiago, apesar de todos os distúrbios sociais. Um cenário de insegurança que volta a ameaçar a final do torneio de clubes mais importante do continente, relembrando a conturbada decisão de 2018, quando Boca e River tiveram que viajar até Madri para definir o campeão depois de sérios episódios de violência por parte da torcida millonaria nas imediações do Estádio Monumental de Nuñez, em Buenos Aires, dias antes.

Esta não é a primeira vez que a ANFP se vê obrigada a ativar o artigo do seu regulamento que se refere à suspensão do campeonato nacional por episódios de catástrofes naturais e/ou desordem pública e da segurança nacional. Em 2010, um terremoto de magnitude 8.8 na Escala Richter, e o posterior tsunami, afetou várias cidades do país causando mais de 700 mortes e enormes danos materiais. A tragédia forçou a paralisação do futebol profissional no país por duas semanas, quando o então Torneio Apertura se encontrava na sua quinta rodada e com um formato semestral, enxuto pela parada prévia à Copa do Mundo na África do Sul. O sismo devastador mobilizou o país inteiro, e somente no dia 13 de março a bola voltou a rolar com um torneio reformulado nos moldes de pontos corridos, terminando em dezembro com o décimo título da Universidad Católica. Coincidentemente, nove anos mais tarde, o time de San Carlos de Apoquindo está prestes a conquistar um novo campeonato de pontos corridos no meio de uma interrupção por forças extraordinárias. Prêmio para o time de Sebastián Piñera, pivô e alvo dos manifestantes nessa “Primavera Latina” de 2019 que parece não ter fim.

Se a final da Taça Libertadores no Chile ainda é uma dúvida, a recente suspensão da Copa América de Futsal na cidade sulina de Los Angeles é mais um indicador de preocupação sobre a capacidade do país para receber semelhante evento e a consequente “invasão” de duas das maiores torcidas da América do Sul. Até agora já foram vendidos cerca de 15 mil ingressos, e os relatórios da Conmebol indicam uma fila de espera de 200 mil pessoas de 70 países procurando entradas ao Estádio Nacional. Com o aeroporto de Santiago colapsado pela dezena de voos atrasados e cancelados, o presente pede pressa para que a fogo se apague rapidamente e a normalidade volte a guiar o cotidiano chileno. Do contrário, segundo o seu regulamento, a própria entidade sul-americana deve ser responsável pela devolução do dinheiro dos ingressos em situações de inabilidade municipal ou nacional.

“Caso Santiago não tenha condição de receber a final da Libertadores por motivos de segurança, a Conmebol tem a obrigação de alterar o local do evento ou a data, e aqueles que não conseguirem acompanhar no estádio, terão direito a devolução do dinheiro do ingresso”, enfatizou o advogado Paulo Feuz.

Na pior das hipóteses, se for necessária a mudança de cidade, ainda não há um plano B da Conmebol para este tipo de imprevisto, já que o seu regulamento não é claro quanto a isso. Igual que o ano passado, somente uma reunião extraordinária entre os dirigentes da entidade poderá definir uma segunda alternativa para albergar este embate decisivo entre brasileiros e argentinos. Com um cenário viral de crise político-social em boa parte do continente, as únicas opções viáveis seriam Colômbia, Paraguai ou Uruguai, considerando que países como Venezuela, Equador, Bolivia e Perú enfrentam dificuldades internas e escassas condições para salvar o espetáculo.

O governo de Sebastián Piñera já deu sinais de resignação e propôs uma agenda com diversas mudanças em diferentes áreas, desde o aumento do salário mínimo e das pensões de aposentadoria, até o congelamento de preços da luz e do metrô. Resta saber como irá reagir o povo nos próximos dias. Cada dia que houver um novo Toque de Recolher, mais distante fica a possibilidade de que Santiago seja a cede da grande final. Os chilenos deixaram claro que querem voltar a ter liberdade, querem os militares de volta a seus quarteis, e pouco a pouco reconstruir esta catástrofe social que deixou escombros e destruição a um nível sísmico de desastre. Por enquanto, a Libertadores segue com a sina de tropeçar na última pedra depois de um longo caminho.

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