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Fluminense X Botafogo: no placar surge a primeira Lei Geral do Esporte do país

Na coluna anterior, contei como o racismo está na origem da intervenção do Estado Novo na organização esportiva nacional. Porém, o que pouca gente comenta é que houve ainda outra causa não tão perversa como a discriminação contra negros e pobres no esporte, mas historicamente muito importante para que se entenda os primórdios do Direito Esportivo de nosso país.

Isso se deu em um clássico carioca. Não estou falando do “Clássico dos Milhões”, nem mesmo de um “Fla-Flu”, mas do mais antigo dos duelos de equipes do Rio de Janeiro, o “Clássico Vovô”, entre Fluminense e Botafogo.

De um lado a família Guinle, com três filhos do patriarca Eduardo Guinle tendo dirigido o Fluminense, e, do outro, Rivadávia Meyer, presidente do Botafogo. A disputa mais encarniçada se deu entre este e Arnaldo Guinle. Em comum, além do gosto pelo futebol, está o fato de terem presidido em algum momento a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), antecessora da CBF e de parte do que hoje também é o Comitê Olímpico do Brasil (COB).

Assim, mesmo levando-se em consideração os critérios ideológicos relevantes para a intervenção do Estado no esporte, sempre vinculados aos problemas do centralismo estatal, do corporativismo e da eugenia, como explica Alchorne de Souza, os motivos do início da tutela estatal sobre a autonomia esportiva poderiam estar em disputas políticas que se reproduziam na elite econômica e esportiva nacional:

Mas, mesmo assim, uma análise mais atenta nos mostrará que outros aspectos também foram decisivos para a precipitação do processo. Para a imprensa da época estava bem claro que o sr. Rivadávia Corrêa Meyer, presidente da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), e o sr. Arnaldo Guinle, ex-presidente da CBD e da AMEA, disputavam o poder. Permeada de interesses alheios à criação do futebol profissional, o que estava em jogo era a dominância dentro do campo esportivo. (Alchorne de Souza. O Brasil entra em ação! Construções e reconstruções da identidade nacional (1930-1947). São Paulo: Annablume, 2008, p. 41)

A contenda entre esses altos representantes da elite carioca pelo futebol desembocou na edição do Decreto-lei n. 1.056, de 19 de janeiro de 1939, que criou a Comissão Nacional de Desportos, sendo ela responsável pelo anteprojeto da primeira lei geral do esporte, que veio a ser o Decreto-lei n. 3.199, de 1941. A partir daí começa verdadeiramente a história do Direito Esportivo brasileiro e a trajetória de João Lyra Filho, nosso patrono.

Isso porque a luta política entre Guinle e Meyer resultou na “Cisão Esportiva”, e seu desfecho se deu justamente na intervenção estatal no esporte por meio da edição deste Decreto-lei de 1941 por Getúlio Vargas e a criação do Conselho Nacional de Desportos (CND), que logo viria ser dirigido por Lyra Filho.

Guinle era membro de uma das famílias mais ricas o país naquele tempo, que dominava as Docas de Santos e havia construído o hotel Copacabana Palace e o Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Além de ter sido presidente do Fluminense, era um dos três delegados brasileiros perante o Comitê Olímpico Internacional (COI). Foi o principal nome na criação da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA) em retaliação à postura do Vasco da Gama de aceitar negros e pobres em seus quadros, lutando pelo profissionalismo.

Rivadávia Meyer era dirigente do Botafogo do RJ e acabou por tomar o poder na AMEA em 1932, justamente derrotando o grupo de Guinle.

A partir desta derrota, Arnaldo Guinle começa a travar uma batalha ainda maior que teria contraditoriamente como pano de fundo a necessidade de profissionalização dos atletas e equipes de futebol no Brasil – freada justamente em nome do racismo e do elitismo.

Esse vai ser o tema da próxima coluna, porque agora peço uma pausa para contar um pouco mais da história desse homem fantástico que foi Arnaldo Guinle. O grande cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues, irmão do maior jornalista esportivo do país, Mário Filho (que dá nome ao Maracanã e escreveu o monumental “O negro no futebol brasileiro”),  disse certa vez n’O Globo, em 1963, que Arnaldo Guinle “foi a maior figura brasileira do esporte em todos os tempos”.

Ele foi responsável não somente por trazer o primeiro torneio internacional de futebol ao Brasil, o Campeonato Sul-americano de 1919, e, em decorrência, pela ampliação do Estádio das Laranjeiras, do Fluminense, tornando-o assim digno do nome “estádio”, como também, principalmente, por propiciar o primeiro grande título da Seleção Brasileira, justamente contra a Celeste do vizinho Uruguai. O gol da vitória na final foi marcado pelo legendário Arthur Friedenreich, para muitos o maior jogador brasileiro de todos os tempos, mas que nunca chegou a uma Copa do Mundo em razão da “Cisão Esportiva”.

Para Clóvis Bulcão, no livro sobre a Família Guinle (“Os Guinle, a história de uma dinastia”, Ed. Intrínseca, 2015), o título sul-americano foi a causa de o futebol ter se tornado uma obsessão em nosso país. Podemos, assim, concordar com Nelson Rodrigues que Arnaldo Guinle foi uma figura maior do futebol brasileiro.

Ocorre que o legado desse sportsman não se resume ao futebol. Arnaldo Guinle foi, para a música brasileira, um dos maiores mecenas. Pixinguinha e Donga, que compunham a Orquestra os Oito Batutas, eram por ele patrocinados, inclusive para turnês internacionais.

Foi dele também o patrocínio para que o maior músico brasileiro de todos os tempos, Heitor Villa-Lobos, iniciasse carreira internacional em uma temporada por ele paga em Paris.

Ainda foi responsável pela consolidação da Orquestra Sinfônica Brasileira, a ela destinando uma sede própria.

Mas foi realmente no futebol que Arnaldo Guinle deixou suas marcas mais profundas, ao ponto de, em crônica escrita na ocasião de sua morte, em 1963, Nelson Rodrigues ter escrito n’O Globo:

“Amigos, enquanto existir um torcedor, que seja um pau-d’água rouco de paixão e de álcool, mas capaz de gritar o nome do Fluminense, Arnaldo Guinle não será um cadáver”.

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