A coluna de hoje aborda mais um tema sutil, tênue sobre a fronteira entre a competência material da Justiça Desportiva (JD) e da Justiça Comum (JC). Escreveu-se em outras oportunidades neste próprio site sobre questões ocorridas no campeonato carioca e nas eleições de uma determinada federação de futsal.
Segundo uma notícia do dia 12 de março de 2024 reporta,[1] a 2a Comissão Disciplinar (CD) do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) do Futebol condenou o Sport a jogar oito (8) partidas de portões fechados e a quitar uma multa de oitenta mil reais (R$ 80.000,00) ao apreciar a demanda sobre aquelas que seriam agressões de parte de sua torcida à comissão técnica do Fortaleza em transporte, resultando em lesão de seis (6) jogadores profissionais.
Embora a decisão seja apenas de primeira instância da JD, já em tramitação de recurso da Procuradoria com assistência da Federação Cearense de Futebol (FCF), vale alguns comentários acerca do caso.
É notório que os fatos criminosos ocorreram a oito (8) quilômetros (km) de distância do estádio onde se realizou a partida entre os times referidos. Neste aspecto há de existir cautela quanto à competência material da Justiça Desportiva, como se observou em outros textos, sob pena de extensão ilimitada do campo material de atuação da JD a usurpar a jurisdição do Poder Judiciário brasileiro.
Rememore-se ao estimado leitor, a iniciar pela Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 217, § § 1o e 2o, que a competência material da Justiça Desportiva se delimita acera da disciplina e competições desportivas.
Neste último termo, a interpretação do que seja “competições desportivas” deve ser restritiva, endógena, no sentido de possível apreciação a respeito de organização de competições que envolva critérios técnicos em derredor de fórmulas competitivas, regulamentos, regras de campetições, instituídas por órgãos das federações e ligas.
Por outra via, seria extrapolar as limitações da dimensão material da disciplina e competições desportivas as intervenções da JD sobre eleições de federações, clubes, infratoras de estatutos, das Leis ns. 9.615/98 (Pelé), 14.597/23 (Lei Geral do Esporte-LGE), disputa de locais de torcidas em estádio público que detém contratação pública com entidades desportivas particulares, etc. Indubitavelmente, nesses casos, quaisquer conflitos emergentes estão suscetíveis de imediato à apreciação do Poder Judiciário (art. 5o, XXXV, LIV, 92 a 126, da CF/88).
O conflito em causa se relaciona com a disciplina desportiva e não com a organização de competições. Nessa viga material, muito menos agressões a 8km do estádio podem ser consideradas de competência material da Justiça Desportiva, pois esta se adstringe aos conflitos existentes no parque esportivo e imediações. Estender esta competência para quilômetros de distância, sem nenhum limite, acabaria por robustecer de forma extrema a judicância da JD, podendo até mesmo ocasionar o enfraquecimento da Justiça Penal e Civil, pelo menos em uma ótica sociológica.
Nessa esteira, o art. 50, caput, da Lei Pelé reproduz a competência material prevista no art. 217, § § 1o e 2o, da CF/88, o art. 201, § 1o, I, ou qualquer outro dispositivo da LGE não regulamenta, em hipótese alguma, a extensão da competência material da JD.
Ademais, as normas pertinentes à Justiça Desportiva na LGE foram todas vetadas na sanção presencial, razão a qual se utiliza neste campo somente a Lei Pelé. Dos arts. 142 em diante da LGE se tratam de temas consumeristas, civis e penais na prática do desporto, em nada se coligam com a competência e extensão espacial de atuação da JD.
O art. 1o do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) também replica da mesma forma a competência material da JD prevista na CF/88 e na Lei Pelé, acima referenciadas, bem como a competência em razão da pessoa, em que se incluem federações, ligas e clubes (associação sem fins econômicos ou sociedade anônima desportiva), mas inexiste regra explícia de extensão espacial de atuação da JD.
Os arts 24 e 28 regulam a distribuição da competência territorial do STJD, TJD e suas CDs em face das competições promovidas pelas respectivas federações estaduais e as que excedem o território de um Estado, sendo organizadas pela CBF ou Ligas Regionais (Copa do Nordeste), sendo competência originária do STJD. Mais uma vez, não há nessas normas delimitação espacial de atuação da JD.
Quem delimita o espaço de judicância da JD são as próprias tipificações infracionais contidas no CBJD. No caso da decisão que condena o Sport, ela se baseia no art. 213 do CBJD. Ora, verifique-se na íntegra as descrições deste tipo normativo:
Art. 213 do CBJD. Deixar de tomar providências capazes de prevenir e reprimir: (Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009).
I – desordens em sua praça de desporto; (AC).
II – invasão do campo ou local da disputa do evento desportivo; (AC).
III – lançamento de objetos no campo ou local da disputa do evento desportivo. (AC).
Em conformidade do que se extrai dos núcleos de tipicidade em epígrafe, é razoável interpretar “praça de desporto” como o parque esportivo, ou seja, estádios, ginásios, pavilhões, estruturas competitivas e suas imediações, porém, seria absurdo pensar que a responsabilidade desportiva recairia-se sobre a organização mandante a quilômetros de distância.
Ocorrências danosas ocorridas fora do parque esportivo devem ser consideradas matérias civis e penais, senão tudo seria ilimitadamente abarcado pela JD, o fenômeno desportivo, sem propriamente ter relação alguma com esta dimensão, e, repita-se: o Estado/Poder Judiciário estaria sempre em atuação secundária na apreciação, punição de atos transgressores como os dete caso.
Conforme se verifica, a sanção disciplinar do STJD não encontra respaldo jurídico sequer de competência para atuação da Justiça Desportiva, tampouco se enquadra em quaisquer tipificações do CBJD.
No que tange ao propagado na mídia pela própria direção jurídica da FCF,[2] anunciando que iria recorrer do julgamento de primeiro grau da 2a CD do STJD na demanda em pauta, teme-se que tais intervenções neste e em outros processos passados não se coadunem com o atual ordenamento jurídico.
A função básica das federações desportivas é promover de maneira imparcial a modalidade desportiva que representa e organiza, assim como organizar suas competições esportivas. Então, as entidades federativas devem atuar sempre de maneira imparcial em relação aos seus afiliados clubes (sociedade anônima desportiva, associação sem fins lucrativos) e jogadores.
Mormente no Brasil, em que a tradição, equivocadamente, demonstra as federações como organizadoras principais das competições profissionais, as entidades federativas devem assumir posição de imparcialidade. Portanto, não caberia assistência jurídica e processual em favor de organização de prática filiada em processo perante à Justiça Desportiva, isto revelaria uma intervenção nem sempre fácil de uniformidade em relação a todos os seus clubes associados, uma condição de causar espécie, consoante se estrutura o sistema jurídico desportivo brasileiro.
Por demais, o art. 55, parágrafo único, do CBJD é contundente ao prescrever que as entidades de administração no desporto (leia-se: federações) detêm prerrogativas de intervir nos processos desportivos em casos alusivos à dopagem, em nada mencionando as demais causas com objetos diversos.
A federação desportiva para intervir em um processo como terceiro interessado seria aceitável na modalidade de assistência da Procuradoria ou de um clube filiado, descabendo quaisquer outros tipos, pelo menos perante aos Tribunais Desportivos, mas para tanto deveria comprovar o interesse jurídico (art. 55 do CBJD c/c arts. 15, 119 e 120 do Código de Processo Civil-CPC).
Uma entidade federativa estadual pode ter interesse meramente econômico ao acompanhar uma organização de prática esportiva afiliada se prejudicando em uma competição, mas jamais poderia ter interesse jurídico, pois em consentâneo ao explicado alhures tem que ser imparcial, mesmo diante dos campeonatos e torneios fora de sua organização específica: Copa do Nordeste, Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil, etc.
Ante todo o esposado, nobre leitor, as ocorrências dos diversos danos que teriam sido provocados por parte da torcida do Sport nem sequer encontra fundamento no ordenamento jurídico atual para se constituir matéria de julgamento da Justiça Desportiva, quanto mais condenação a ser cumprida por esta. A intervenção de terceiro interessado (assistente), comumente aceita nos últimos anos, pelo STJD em demandas dos clubes cearenses, também não encontra suporte no sistema jurídica vigente, pois federação estadual pode ter, no máximo, interesse meramente econômico, mas nunca jurídico neste tipo de demanda, uma vez que a sua função deve ser de imparcialidade plena diante dos seus clubes afiliados.
Em resumo, a violência acontecida no dia 22 de fevereiro de 2024, após o jogo entre Fortaleza e Sport na cidade de Recife, a 8 quilômetros do Estádio, é de competência material privativa do Poder Judiciário (Justiça Comum Criminal e Civil), nem mesmo devendo existir processo, julgamento da Justiça Desportiva em torno de tais acontecimentos. Também não exite interesse jurídico da Federação Cearense de Futebol, senão o meramente econômico, que legitime o ingresso como terceiro interessado (assistente da Procuradoria) no processo em tramitação contra o Sport Club do Recife.
Crédito imagem: Divulgação/Fortaleza
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[1] LEAL, Daniel; BARBOSA, Alexandre. Sport. Disponível em: <https://ge.globo.com/pe/futebol/times/sport/noticia/2024/03/12/sport-e-condenado-pelo-stjd-a-oito-jogos-de-portoes-fechados-por-atentado-ao-onibus-do-fortaleza.ghtml>. Acesso em: 18 mar. 2024.
[2] TNT Sports. Disponível em: <https://tntsports.com.br/futebolbrasileiro/Federacao-Cearense-recorre-no-STJD-e-Sport-pode-ser-excluido-da-Copa-do-Nordeste-20240312-0018.html>. Acesso em: 18 mar. 2024.