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França contraria avanços de direitos humanos e obriga atleta a escolher entre fé e esporte

As conquistas no esporte avançam um pouco, sem deixar de dar alguns passos para trás. Nessa semana tivemos um exemplo. As atletas francesas de origem muçulmana não poderão competir de hijab nas Olimpíadas de Paris.

A proibição foi anunciada pela ministra de esportes da França, Amélie Oudéa-Castéra. Sem nenhuma justificativa convincente, ela afirmou que as desportistas e integrantes das comissões técnicas do país estão proibidas de usarem o véu islâmico durante os Jogos Olímpicos de 2024.

Uma medida evidentemente discriminatória. Primeiro porque ninguém deve dizer o que as mulheres podem ou não vestir; segundo, porque de acordo com as normas internacionais de direitos humanos, as restrições à expressão de religiões ou crenças, como a escolha do vestuário, só são aceitáveis ​​em circunstâncias muito específicas.

A proibição determinada pelo Estado francês vai na contramão de avanços que o esporte tem apresentado recentemente.

O mundial feminino

Quando Nouhaila Benzina entrou em campo na Copa do Mundo em julho para defender Marrocos pelo Mundial Feminino de futebol ela já fazia história, mesmo antes da bola rolar. A marroquina de 25 anos foi a primeira jogadora a competir no torneio usando um hijab (um tipo de véu que cobre a cabeça). A zagueira se tornou um símbolo de uma nova conquista de direitos humanos em ambiente esportivo.

O esporte entendendo e protegendo a fé da atleta. Um símbolo da inclusão no esporte.

Quando falamos de cultura islâmica, por muito tempo o esporte esqueceu o ideal esportivo de inclusão. Esporte protege direitos humanos, como o próprio estatuto da FIFA traz.

No art. 3, ele traz a previsão de que a “FIFA está comprometida com o respeito aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos e deverá empreender esforços para promover a proteção desses direitos”.

Mas alegando questão de segurança, o uso do hijab foi proibido não só no futebol, mas em vários esportes.

Faltou sensibilidade ao esporte. Faltou entender sua natureza.

Faltou ouvir, dialogar, chamar a ciência para conversa e encontrar um caminho sem agredir direitos humanos.

Benzina se tornou um símbolo de inclusão em um esporte que até pouco tempo não permitia que mulheres usassem hijab para jogar futebol.

Uma história de discriminação

Imagine você, sendo atleta, prestes a disputar um mundial ou uma olimpíada, tendo que optar entre a fé e o esporte. Essa não foi uma escolha apresentada a um ou dois atletas. Nem um problema que apareceu em determinado esporte. Esse é um conflito permanente no mundo esportivo. O bom é que o esporte vem apresentando boas soluções.

As mulheres muçulmanas usam o hijab, um véu islâmico que cobre cabelo e pescoço. No dia a dia e também na prática esportiva. No Irã, por exemplo, o uso do véu pelas mulheres que se expõem publicamente é uma imposição do ordenamento jurídico. E isso trouxe inúmeros problemas às federações esportivas do país. No futebol, no judô, no basquete, no boxe.

O problema é que regras esportivas de várias modalidades vedavam o uso do hijab em competições, alegando que ele poderia comprometer a saúde dos atletas, aumentando o risco de lesões na cabeça e no pescoço. O cenário esportivo ajudava a afastar ainda mais as mulheres muçulmanas de competições esportivas internacionais. De novo, um conflito entre Lex Sportiva e Direitos Humanos.

Em 2011 a seleção de futebol feminino do Irã foi eliminada das eliminatórias para os jogos olímpicos de Londres 2012 porque as atletas se recusaram a tirar o hijab na partida contra a Jordânia. A decisão da FIFA repercutiu, e várias entidades muçulmanas, além de outras de direitos humanos, como também atletas, se uniram em uma campanha chamada “Let us play”.

Com o auxílio da tecnologia, os véus foram adaptados à prática esportiva, diminuindo a força dos argumentos daqueles que defendiam que ele era perigoso e ameaçava a saúde dos atletas. A FIFA cedeu e, em 2014, anunciou que permitiria o hijab em competições nacionais.

Na esteira do futebol, outros esportes acabaram cedendo. A muçulmana Bilquis Abdul-Qadir se tornou a primeira mulher a competir com o hijab no basquete universitário americano; um pouco depois, a Federação Internacional de Basquete também permitiu o uso em competições profissionais.

Essa decisão veio logo após a disputa de um jogo de basquete feminino no Irã em que as mulheres utilizaram hijab, já que foi a primeira vez na história do esporte do país em que homens puderam ir ao ginásio para assistir a um jogo disputado por mulheres.

E a cultura do esporte vem mudando depois dessas decisões. Em Londres 2012, pela primeira vez mulheres da Arábia Saudita e do Catar puderam participar dos Jogos Olímpicos. Na Rio 2016, Ibtihaj Muhammad foi a primeira atleta americana a competir com o véu. Ganhou medalha de bronze na esgrima e subiu ao pódio de hijab.

Também no Rio uma imagem de um jogo de vôlei de praia que nem valia medalha ganhou destaque em todo o mundo. Na partida entre a seleção da Alemanha e a seleção do Egito, uma foto mostrou a disputa entre a alemã em trajes de praia e a egípcia com roupas cobrindo todo o corpo. Foi a primeira vez que o Egito participou da modalidade nos Jogos Olímpicos.

No ano passado, uma boxeadora muçulmana dos Estados Unidos também conseguiu permissão para lutar em competições nacionais vestindo o hijab. Ela busca agora a permissão internacional.

O esporte avançou

O esporte tem avançado. Segundo o advogado e escritor Vinicius Calixto, no livro “Lex Spottiva e Direitos Humanos”, “a retirada da proibição do uso do hijab é inegavelmente uma ação que tem consequências práticas no caminho da inclusão no esporte e vai ao encontro dos princípios olímpicos de não discriminação e da prática do esporte como um direito humano”.

Ou seja, hoje a Lex Sportiva e os Direitos Humanos parecem caminhar na mesma direção com relação ao hijab. Ao conciliar a fé com a prática esportiva, o esporte dá um bom exemplo para a sociedade de como é possível, com diálogo, bom senso e flexibilidade, encontrar boas soluções também para importantes conflitos da nossa sociedade.

O governo francês poderia olhar esses exemplos, refletir e aprender.

Crédito imagem: Pexels

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