Na leitura dos registros de reuniões do Conselho Nacional de Desportos (CND), chamou-me a atenção uma menção ao julgamento de um processo que envolvia nada mais nada menos que Arthur Friedenreich. Todos vocês já sabem, mas vou insistir em registrar, que Friedenreich é considerado o primeiro ídolo do futebol brasileiro. Provavelmente, poderia ser considerado o maior dos atletas da modalidade no país, caso não se tratasse ainda de um início do desenvolvimento do esporte e com pouquíssimos registros de imagens de sua atuação enquanto profissional.
Pois a ata da segunda reunião do CND traz o seguinte registro:
CONSELHO NACIONAL DE DESPORTOS
ATA DA SEGUNDA SESSÃO ORDINÁRIA DO CONSELHO NACIONAL
Às dezesseis horas do dia 5 de agosto de mil novecentos e quarenta e um, na sala número mil seiscentos e dezenove do Gabinete do Ministério da Educação e Saude […] nesta Cidade do Rio de Janeiro, presentes os Senhores Ministro Dr. Gustavo Capanema, General Newton Cavalcante, Almirante Alvaro de Vasconcellos e Dr. João Lyra Filho, membros do Conselho, foi aberta a sessão pelo Presidente
[…]
Passando-se à ordem do dia o Secretário leu o parecer número um, do Conselheiro Almirante Alvaro de Vasconcellos no processo número trinta mil oitocentos e desesete, de Arthur Friedenreich e outros, concluindo pelo provimento do pedido tendo em vista o que estabelece o Código do Jogo, constituido pelas regras adotadas pela Federation Internacionale de Football Association (F. I. F. A.) e a expressa determinação do artigo quarenta e três do decreto-lei três mil cento e noventa e nove. Submetido à votação foi o parecer aprovado.
Intrigava-me a leitura desta transcrição da reunião do início dos trabalhos do CND justamente pelo fato de Friedenreich não ser mais à esta época jogador de futebol profissional. Já estava nesta data com 49 anos e havia parado de atuar como jogador profissional desde 1935, portanto seis anos antes do julgamento.
Junte-se a isso o fato de, como já contei em edições anteriores desta coluna, a justiça esportiva brasileira só ter surgido oficialmente em 1942, com a instituição dos tribunais de penas por meio de uma resolução do próprio CND.
Não seria possível em qualquer situação, portanto, que Friedenreich estivesse sendo julgado pelo colegiado em razão de sua atuação como atleta.
Inquieto com o mistério, revolvi ainda mais os baús e – surpresa! – encontrei o parecer que deu base ao julgamento. Da lavra o conselheiro Alvaro de Vasconcellos, Almirante da Marinha e um dos militares que compunham o CND, o documento é justamente o Parecer n° 1 do CND, o primeiro do órgão.
Tomo mais uma vez a liberdade de reproduzir a íntegra, exatamente pelo valor histórico do documento:
Conselho Nacional de Desportos
PARECER N. 1 — PROCESSO N. 30.817
Os signatários do apelo que dá origem a este processo, que se dizem “Campeões e técnicos de futebol, jornalistas o escritores com longos anos de serviço à causa desportiva brasileira” pedem providências para que seja integralmente observado o código do futebol, “cujos dispositivos” afirmam, “está sendo desrespeitado pelo menos em duas de suas disposições essenciais”.
O apelo indica que o desrespeito às duas disposições consiste:
- a) na criação do cargo de cronometrista e
- b) na elevação do número do juizes de linha de dois para quatro.
Trata-se realmente de duas inovações ao Código e que, embora inconvenientes pela presença desnecessária de mais três pessoas no campo, não altera em sua essência o mecanismo do jogo. Indiscutivelmente, porem, a primeira especialmente altera o aparelho julgador, ampliando-o e parcelando assim a unidade necessária no julgamento, com diminuição da autoridade do juiz, que sempre se desejou concentrada o incontrastada.
Das regras da Football Association, britânica, que são, sem qualquer alteração as da Fédération Internationale de Football Associations (Fifa, por abreviação) e que constituem o código do jogo, adotado pelo International Football Association Board, a do número 5 atribue, em sua letra b) ao juiz, a obrigação de “to act as time Keeper”, isto é, “atuar como cronometrista”.
Nesse código não há qualquer referência a um cronometrista como auxiliar do juiz, nem de forma diferente tem sido traduzida aquela regra nas várias versões portuguesas já publicadas das regras do jogo.
De sorte que, pode concluir-se, a criação do cargo de cronometrista desrespeita o que se contem na regra 5 sobre os deveres do juiz e cuja letra e) ainda. exige que este não permita a presença, no campo, de quem quer que não seja jogador da partida, ou juiz de linha.
Tambem a elevação do número de juizes de linha se faz com inobservância da regra 6 do Código Internacional, que taxativamente prescreve que eles sejam em número de dois.
É oportuno recordar que no passado algumas regras de Football Association sofreram ligeiras modificações; essas duas, nunca e através de dezenas de anos foram sempre respeitadas.
Ora, como o- decreto-lei n. 3.199, que criou este Conselho, determina em seu art. 43 que
“Cada confederação adotará o código de regras desportivas da entidade internacional a que estiver filiado, fá-lo-á observar rigorosamente pelas entidades nacionais que lhe estejam direta, ou indiretamente vinculadas”,
não há como manter, entre nós, as práticas contra as quais o apelo em apreço, pede providências.
Se, entretanto, apesar de experiência tão longa e em tantos países, a prática, entre nós, vier demonstrar a necessidade da criação do cargo do cronometrista e de elevação do número dos juízes de linha, será então, o caso deste Conselho recomendar à C. B. D. que se dirija ao International Football Association Board, conforme os estatutos deste facultam, sugestões nesse sentido uma vez que seria lamentavel modificar aquele decreto-lei ou permitir que o futebol se praticasse com desrespeito ao mesmo.
À vista do exposto sou do parecer que este Conselho, tomando em consideração o apelo de que lhe foi dirigido, determine à Confederação Brasileira de Desportos que providencie afim de que desapareça de nossos campos de futebol o cronometrista e de que o número de juizes de linha seja reduzido a dois, sem o que, estariam sendo violados o Código do jogo e o artigo 43 do decreto-lei número 3.199.
Rio, 5 de agosto de 1941. — Alvaro Rodrigues de Vasconcellos, relator. — De acordo com a proposta. — Newton Cavalcanti. — J. E. de Macedo Soares. — João Lyra Filho.
Fantástica e bizarra situação. O craque Friedenreich, secundado de outras pessoas de renome no futebol, peticionou ao CND (órgão estatal) para que a CBD (entidade nacional de administração da modalidade futebol, privada) respeitasse o Código do Jogo da FIFA!
É um dos casos mais interessantes para se discutir os choques aparentes entre a Lex Sportiva e o direito interno de um país.
E este será o tema da minha próxima coluna.