Por Tom Assmar
Em uma recente entrevista sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, Pep Guardiola afirmou de forma irretocável que a guerra representa o “fracasso absoluto das instituições políticas”. Ele tem toda razão. A violência é sempre o grande fracasso da humanidade. Todas as formas de violência – estejam elas nas dramáticas imagens trazidas pela guerra entre países ou na invisível realidade da nossa crescente desigualdade social e econômica. A injustificável e criminosa onda de ataques e mortes que assolou o futebol no Brasil e no México nas últimas duas semanas também nos provoca a pensar se estamos mesmo fracassando nos nossos propósitos humanos. Não há resposta certa para essa pergunta. Escolha seu ponto de vista e coloque suas cartas na mesa. Afinal, a história não é apenas a cronologia dos fatos. Ela é também – e acima de tudo – a transformação dos nossos valores. Mas lembre-se que é possível contar muitas mentiras dizendo apenas a verdade.
Já vivemos tempos de maior esperança. Há exatos 50 anos, os Novos Baianos lançavam um álbum que marcaria a história da música brasileira como um dos melhores e mais influentes trabalhos musicais já produzidos pela MPB. Acabou Chorare é dessas pérolas que representam parte da geração de brasileiros que vivia entre a repressão da ditadura e os sonhos de construir um país e uma vida melhores.
Vou mostrando como sou, e vou sendo como posso
Jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos
E pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto
E passo aos olhos nus ou vestidos de lunetas
Passado, presente, participo sendo o mistério do planeta
Mistério do Planeta – Novos Baianos
O Brasil pós 1984 vivia um ambiente político-institucional que buscava construir um novo pacto nacional a partir da busca por objetivos comuns. Sair da ditadura para entrar na democracia exigiu imenso esforço de negociação e um firme senso coletivo, em um processo que só aconteceu porque seus líderes foram capazes de construir convergências que atendessem a interesses maiores, culminando com a promulgação da Constituição de 1988. É preciso dividir para poder multiplicar. Tenho sérias dúvidas se nossa geração seria hoje capaz de atingir esse consenso.
Não por acaso, no ano anterior de 1987, vimos acontecer no futebol o embrião de algo que poderia ter se transformado na 1ª grande liga mundial de clubes, e que usava o sugestivo nome de Copa União. Ela poderia ter sido o símbolo das consequências transformadoras que um projeto coletivo pode trazer a um negócio ou a um país. Mas não deu certo, e assim como ocorreu em muitas outras iniciativas posteriores, nossa capacidade de pensar a agir coletivamente virou apenas um breve momento no tempo.
Tornar uma indústria competitiva – assim como uma sociedade mais justa – é um esforço coletivo. Empresas e pessoas podem ser individualmente talentosas, mas segmentos de mercado e países precisam investir de forma contínua no fortalecimento das suas condições institucionais e estruturais. A formação da União Europeia ilustra como um projeto de integração política e econômica pode criar uma força coletiva que regule os conflitos entre seus integrantes através de regras claras e estáveis, tornando suas relações tão interdependentes que uma guerra entre eles passe a ser praticamente impossível. Arranjos tão complexos só podem acontecer quando há tempo disponível e fortes lideranças com senso coletivo em busca do bem comum. Não é fácil, não é simples, não é perfeito. Mas é eficiente e possível, e quando acontecem representam a vitória da inteligência e da humanidade sobre a ignorância e a violência.
E no futebol isso não poderia ser diferente. Não há exemplo mundial de um projeto sustentável e bem sucedido no longo prazo que esteja baseado apenas nas competências individuais de um clube. Times estelares podem ganhar torcedores e títulos, mas são campeonatos competitivos que fazem todos serem mais rentáveis e relevantes. E não adianta apenas gastar mais. Dinheiro não compra tudo, a excelência vem do hábito, e o hábito é influenciado pelo ambiente. Em 30 anos, as principais ligas europeias (Inglaterra, Espanha, Itália e Alemanha) transformaram seus campeonatos em poderosas máquinas de desenvolvimento de negócios, conquistando torcedores e investidores muito além das suas fronteiras territoriais. A Europa consolidou-se como o mercado dominante no futebol mundial, com times e jogadores movimentando valores cada vez mais impressionantes. Em agosto de 2017, o PSG gastou EUR 222 milhões com Neymar, o equivalente hoje a R$ 1,2 bilhão. Em tempos de SAF, quantos clubes brasileiros poderiam ser comprados apenas com o valor de um único jogador ?
Recuperar a qualidade do nosso produto não pode estar baseado apenas em vender nossos clubes para investidores estrangeiros. Precisamos mudar o ecossistema do nosso futebol: gramados, estádios, formação de atletas e treinadores, arbitragem, gestão das ligas e dos clubes, regulação e justiça esportiva, patrocinadores, direitos de transmissão e qualidade do jogo. Nada disso irá funcionar se não construirmos um projeto coletivo. E ele não irá existir enquanto não formos mais exigentes e cuidadosos na escolha daqueles que liderarão esse processo. Não há produto quando não há gestão. Não há gestão quando não há liderança. E não há liderança legítima quando perdemos o senso de justiça e coletividade.
O Brasil não está apenas empobrecendo. Ele está se desumanizando. Tratamos com naturalidade as tragédias cotidianas que alimentam o nosso atraso. Um país que convive impunemente com a violência é um país onde a humanidade foi derrotada. Não se iluda: nesse jogo perdemos todos, pois só há futuro quando se promove o bem comum – no futebol e na vida. Em uma conhecida piada, dois amigos encontram um leão durante um safari. Um deles começa então a calçar seu tênis de corrida, enquanto o outro diz: “pra que isso ? Você não vai correr mais rápido que o leão”. No que o outro responde: “eu não preciso correr mais rápido que o leão. Eu só preciso correr mais rápido que você”. É engraçada mesmo. Mas pense comigo: se ao invés de usar os pés eles se unissem e se dessem as mãos, talvez pudessem escapar juntos … talvez … Por aqui, no nosso safari cotidiano, não iremos muito longe enquanto corrermos descalços e sozinhos …
Crédito imagem: Petz
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Tom Assmar tem graduação e mestrado em Administração, e atua há mais de 25 anos com gestão, planejamento e finanças. Acredita que o futuro do nosso futebol passa necessariamente pela formatação de um produto que atenda aos interesses coletivos e pela qualificação da gestão dos clubes. É sócio do Futebol S/A.