O futebol chinês não é mais o mesmo e está em franca decadência. Foi-se o tempo que salários astronômicos e grandes contratações movimentavam o bilionário mercado e tomavam contam das manchetes jornalísticas.
Há um mês para o início da nova temporada, uma notícia abalou o futebol chinês. O atual campeão da Superliga, o Jiangsu FC, na qual seus proprietários, a rede de shopping centers Suning – também dona da Internazionale de Milão -, anunciou o encerramento das atividades do clube. O motivo é uma dívida que beira a casa dos R$ 535 milhões.
A crise econômica também já atingiu outros clubes. Em maio do ano passado, o Tianjin Tianhai foi desmanchado. O seu rival, o Tianjin Teda, também poderá seguir o mesmo caminho nos próximos meses. Em fevereiro, o Shandong Luneng acabou sendo expulso da Liga dos Campeões da Ásia por falta de pagamento aos seus jogadores. Somente em 2020, 16 times das três primeiras divisões do futebol chinês decretaram falência, afastando grandes nomes e acabando com o sonho de um dia esse esporte ser uma marca do país.
“A atual mudança de rumo no futebol chinês é reflexo de uma série de coisas, e não tem uma explicação única. Precisamos lembrar que o processo começou desorganizado. Baseados no fato que Xi Jinping gosta de futebol, e com a justificativa de desenvolver o futebol local, várias empresas estatais e privadas iniciaram investimentos para criar um negócio de entretenimento relevante. Vale lembrar que isso veio à reboque da política chinesa de desenvolver o setor de serviços como forma de trabalhar no crescimento econômico, uma vez que infraestrutura e indústria perdiam capacidade de impulsionar a economia na velocidade necessária. A partir de então foram feitos investimentos completamente sem sentido nem lastro, bancados por dinheiro estatal e privado, mas não por receitas sustentáveis”, analisa o economista Cesar Grafietti.
Esse “desmanche” não é uma novidade. Há exemplos similares no passado, como o da North American Soccer League (NASL), liga de futebol que nasceu nos Estados Unidos, em 1968, e logo se viu recheada de grandes estrelas, como Pelé e Beckenbauer.
“Tal como no atual futebol chinês, o crescimento abrupto, imediato, num país até então coadjuvante na modalidade, costuma ser apenas aparente, fictício, eis que há grande fluxo de dinheiro e interesse sem que haja estruturação sustentável e cultural do negócio em longo prazo. Na primeira crise econômica ou política, os mecenas ou o patrocinador principal retiram o aporte financeiro, mas as obrigações contraídas nos tempos de bonança permanecem, fazendo com que a liga e/ou seus clubes acabem por ruir”, compara Victor Targino, advogado e consultor especialista em direito desportivo.
“A ideia oficial era criar um canal de intercâmbio, mas na prática era uma forma de ser relevante no ocidente. O fato é que nenhum clube europeu teve atletas chineses em seus elencos, mas muito dinheiro foi investido para reorganizar clubes, como no caso da Inter de Milão. Além de casos de completo desastre como a aquisição do Milan, cujo empresário chinês não pagou pelo financiamento e perdeu o controle do clube para o fundo americano Elliott”, afirma Grafietti.
Para Victor Targino é preciso de uma mudança de filosofia para o negócio dar certo: “a chave está na diversificação da matriz de receitas e na ampliação gradual e ordenada do negócio (limitação de gastos, distribuição equilibrada de renda, entre outras), tal como planejou a Major League Soccer, por exemplo, fundada em 1996, já ciente dos erros de sua antecessora. O empreendedor no esporte, esteja nos bastidores de uma liga ou de um clube, não pode, nunca, depender de uma única fonte de investimento (patrocínio, transmissão televisiva, etc), tratar o negócio como mera diversão ou acreditar na ilusão de que algumas poucas temporadas estelares e endinheiradas se traduzirão em sustentabilidade e prosperidade ao meio em que inserido”.
Ascensão do futebol chinês
Para tentar se destacar no mercado futebolístico mundial, clubes chineses desembolsaram quase R$ 2,8 bilhões em contratações de jogadores e treinadores estrangeiros nos últimos anos. Nomes badalados como os de Jackson Martínez, Carlitos Tévez, Alex Teixeira e Fabio Capello se tornaram realidade. O entusiasmo era tamanho que Lionel Messi e Cristiano Ronaldo chegaram a ser especulados.
O auge do mercado foi em 2017, quando os donos das equipes (grandes empresas chinesas) decidiram apoiar a ideia do presidente da China, Xi Jinping, de estimular e promover o desenvolvimento do futebol no país mirando a conquista de uma Copa do Mundo no futuro. O projeto seduziu brasileiros, que chegarem a se naturalizar chineses para serem convocados pela seleção nacional, como foram os casos de Aloísio, Elkeson e Ricardo Goulart.
Para evitar perdas, as transferências passaram a ser tributadas a uma taxa de 100% a partir de 2017, com a imposição de teto salarial que não poderia ultrapassar 3 milhões de euros por ano em cada equipe. Mesmo assim, os clubes acabaram se endividando, e seus proprietários, já afetados pela pandemia, não conseguiram fazer um socorro. É importante destacar também que as novas regulamentações que proíbem os times de exibirem os nomes das empresas dos proprietários trouxe uma desmotivação aos investidores.
Altos salários e o início da crise
A principal razão pela crise vivida pelos clubes do futebol chinês se dá pelos salários astronômicos oferecidos aos jogadores e técnicos. Os dirigentes encontraram no dinheiro a principal ferramenta para convencer profissionais a deixaram suas ligas e seguirem rumo ao país asiático.
“O salário médio dos nossos melhores jogadores é 5,8 vezes superior ao dos atletas do campeonato japonês e 11,6 vezes superior ao do sul-coreano. São números alarmantes, como é que ainda não acordamos?”, lamentou o presidente da Federação de Futebol da China, Chen Xuyuan, em dezembro, em uma entrevista à agência Xinhua.
A falta de rentabilidade, uma das consequências da pandemia, resultou em um desequilíbrio financeiro, obrigando a grandes nomes deixaram esse mercado.
Caso Jiangsu Suning
Fundando em 1994, o Jiangsu Suning foi um dos primeiros times do futebol chinês a chamar a atenção do mundo pelas suas contratações. Em2016, a equipe contratou os brasileiros Alex Teixeira por 50 milhões de euros (R$ 340 milhões) e Ramires por 28 milhões de euros (R$ 190 milhões), além de mirar outros grandes nomes do esporte, como o do galês Gareth Bale, que acabou não dando certo.
O dinheiro parecia não ter fim, mas essa realidade mudou nos últimos meses. Um dos principais agravantes foi a crise gerada pela pandemia de Covid-19. No caso do Suning, que tinha uma média de público de 27 mil torcedores por jogo, dois problemas financeiros foram determinantes: falta de arrecadação com bilheteria e uma queda acentuada nos negócios do dono do clube.
No começo de fevereiro, o então presidente do Jiangsu, Zhang Jindong, anunciou que a empresa proprietária do clube abandonaria suas atividades não essenciais para focar apenas nos negócios principais, na qual não incluía o futebol.
A crise econômica vivida pelo clube ficou evidenciada no último treino, no dia 21 de fevereiro, quando nem os equipamentos básicos estavam disponíveis. Além disso, jogadores ainda precisam receber parte dos salários e gratificações pelos títulos. Nesta semana, a empresa anunciou que venderá 23% de suas ações para investidores estatais.
“Devido à sobreposição de variáveis incontroláveis, o Jiangsu não consegue garantir a permanência na Super League e na AFC. Nos últimos seis mesmos, o clube fez tudo para garantir a sua continuidade, sem perder qualquer oportunidade. Quando nós chegamos ao limite do prazo para registro da temporada 2021, temos que fazer o anúncio: com efeito imediato, encerramos as operações de administração do clube, ao mesmo tempo que esperamos que outras empresas queiram discutir o futuro conosco”, anunciou o Jiangsu.
A princípio, o investimento na Inter de Milão não deverá ser desfeito, no entanto, a empresa está em busca de um novo investidor majoritário para o clube italiano, mas que ainda não foi encontrado. Esses problemas extracampo contrastam com o desempenho em campo, onde o time é o atual líder do Campeonato Italiano.
“O teto salarial e a “recomendação” para vender os clubes europeus foi a senha para que o futebol mudasse de patamar e efetivamente passasse a buscar um desenvolvimento de longo prazo e focado na formação de atletas. O fracasso, ao final, é reflexo de um crescimento desordenado, e fruto de uma tentativa de mudar a ordem da força política associada ao futebol. Acabou sendo um esconderijo de atletas ou um encerramento de carreira para muitos, e não conseguiu desenvolver nada de sólido. Faltou planejamento”, finaliza Grafietti.
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