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Futebol e (in)segurança jurídica: da Medida Provisória 984 ao Projeto de Lei 4889/2020

Há pouco mais de quatro meses, o mercado do futebol foi tomado por um alvoroço: a edição da Medida Provisória nº 984/2020 alterava a regra então vigente com relação ao direito de arena (art. 42 da Lei Pelé), impondo uma lógica distinta daquela com base na qual se regiam os contratos envolvendo direitos de transmissão. O direito de arena, até então pertencente às “entidades de prática desportiva” participantes do espetáculo esportivo (ou seja, ambas as equipes participantes de uma partida), passava a ser atribuído exclusivamente ao clube mandante do jogo. Uma mudança legislativa de grande impacto, considerando que a cessão desses direitos representa uma das principais (se não a principal) fontes de receita dos clubes brasileiros – ainda mais em tempos de pandemia, sem a presença de público nos estádios.

Não por acaso, a abrupta modificação trazida pela medida provisória suscitou discussões no âmbito jurídico. De plano, vieram à tona questionamentos sobre sua forma, afinal não havia qualquer sinal aparente de urgência (requisito indispensável para edição de medidas provisórias, nos termos do art. 62 da Constituição Federal) que justificasse o tratamento da matéria por meio desse instrumento. Com relação ao mérito, a norma trouxe à baila discussões relevantes e necessárias sobre o direito de arena, carregando a reboque debates acerca de negociação individual ou coletiva de direitos de transmissão. O fomento a esses debates foi um aspecto bastante positivo da MPV 984.

Contudo, olhando o copo meio vazio, é inevitável constatar o cenário incerto e litigioso dela decorrente. Aspectos contratuais suscitaram questionamentos e culminaram em alguns processos judiciais. O cerne da discussão dizia respeito, sobretudo, ao regime dos contratos celebrados entre clubes e emissoras de televisão antes da edição da medida provisória, e se/como eles seriam afetados pela então nova redação do art. 42 da Lei Pelé. Diferentes teses jurídicas foram desenvolvidas, enquanto o mercado ficava em compasso de espera pela conversão da medida provisória em lei.

Apesar dos aparentes esforços de importantes clubes do futebol brasileiro em manifestar seu apoio à MPV 984, seu trâmite no Congresso Nacional foi tímido. Nessa condição, qualquer planejamento relacionado a direitos de transmissão (por exemplo, renegociação de contratos, tratativas visando novos contratos, possível entrada de novos players no mercado de transmissão…) restava prejudicado, afinal não havia segurança jurídica sobre a regra a ser aplicada a médio e longo prazo. E o principal temor se confirmou na semana passada, quando a Medida Provisória nº 984/2020 caducou; ou seja, passaram-se 120 dias desde sua edição, e ela não foi sequer apreciada pelo Congresso Nacional. Depois de tanto alvoroço, tantas incertezas e tantos debates, voltamos ao status anterior: vigora a antiga (e agora, novamente, atual) redação do art. 42 da Lei Pelé, pela qual se exige a cessão de direitos de transmissão por ambas as equipes envolvidas em uma partida para que ela possa ser exibida.

Independentemente da avaliação sobre qual o melhor modelo, esse episódio é revelador de como é tratada a legislação esportiva no Brasil – especialmente no que tange à sua concepção. Não raro nos deparamos com processos legislativos nos quais a incerteza (sobre a forma ou sobre o mérito) dá o tom, causando prejuízo ao esporte justamente em função da insegurança jurídica. No caso em tela, o problema residiu substancialmente na forma imprópria de edição da norma via medida provisória, seguida da falta de iniciativa do Congresso Nacional em apreciá-la.

Se nessa hipótese o principal óbice estava na forma, em outros ele se encontra no próprio conteúdo da norma. Nesse sentido, vale observar o Projeto de Lei nº 4889/2020. Apresentado na Câmara dos Deputados no último dia 13 (três dias antes de caducar a Medida provisória nº 984/2020), pretende “dispor sobre a criação da Liga profissional do futebol masculino, bem como sobre a negociação coletiva do direito de transmissão”. Mais um caso em que trazer o(s) tema(s) à pauta de discussões é muito bem vindo; mas que comporta problemas na concepção da norma que podem comprometê-la seriamente.

O art. 1º já revela isso ao dispor o seguinte: “A partir do início da temporada esportiva do ano de 2022, as atuais séries A e B do campeonato profissional de âmbito nacional da modalidade futebol masculino deverão ser organizadas e desenvolvidas por Liga profissional de futebol, constituída exclusivamente como sociedade empresária, observado, no que couber, o disposto no art. 20 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998”. Em outras palavras, busca-se impor aos clubes participantes das séries A e B a criação de uma liga, inclusive determinando sua organização como sociedade empresária.

Essa imposição contraria não apenas o princípio da autonomia das entidades esportivas, insculpido no art. 217 da Constituição Federal, mas também o art. 5º, inciso XX da Carta Magna, segundo o qual “ninguém poderá ser compelido a associar-se”. Logo, por um motivo ou por outro, o dispositivo revela-se inconstitucional. É certo que durante sua tramitação o projeto de lei pode ser objeto de emendas e, em sua versão final, apresentar conteúdo aderente à Constituição; mas por que iniciar a discussão legislativa já partindo de uma premissa inconstitucional?

Além disso, na hipótese de que esse artigo efetivamente converta-se em lei, fica a pergunta: por quanto tempo resistirá ao exame judicial de sua constitucionalidade?  Veja-se que, mais uma vez, a norma criada (ou que ao menos se busca criar), ao invés de conferir maior segurança jurídica, pode acabar por ter efeito contrário, gerando incerteza em função da afronta a princípios constitucionais e se revelando desde a origem suscetível a produzir efeitos por tempo reduzido – exatamente como ocorreu, por outros motivos, com a Medida Provisória nº 984/2020.

Repita-se: é importante que temas como o direito de arena, a negociação de direitos de transmissão e a criação de ligas estejam na ordem do dia do futebol brasileiro e sejam amplamente debatidas; afinal, o debate enriquece as ideias e fomenta a evolução contínua do futebol brasileiro. No entanto, a elaboração de normas legais relativas a esses tópicos (ou quaisquer outros) não pode ser um exercício de tentativa e erro. Pelo contrário, deve ser pautada justamente por esses debates – prévios, não posteriores – e conferir ao setor a segurança jurídica necessária para que se ampliem os investimentos no setor. Assim, ganharia muito o nosso futebol (e o esporte como um todo) se as leis (em sentido amplo) fossem pensadas e elaboradas com base numa visão sistêmica e em consonância com os preceitos constitucionais.

O Projeto de Lei do Senado nº 68/2017 é o melhor exemplo desse ideal. Trata-se de projeto elaborado a partir de dezenas de audiências públicas com a participação de importantes juristas atuantes no esporte, que busca sistematizar de forma adequada a legislação esportiva brasileira em estrita consonância com os preceitos constitucionais, conferindo segurança jurídica às relações esportivas. Infelizmente, contudo, nossos legisladores parecem preferir caminhar no sentido oposto, privilegiando iniciativas legislativas sem o adequado debate prévio e, pior, com imenso potencial de gerar insegurança jurídica e judicialização. Assim, perde o futebol – e o esporte brasileiro como um todo.

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