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Futebol feminino e maternidade: avanços e desafios

Por Alice Laurindo e Beatriz Chevis

 

No final de 2019, os amantes do futebol feminino foram surpreendidos com a feliz revelação da gravidez de Alex Morgan, atacante referência da seleção estadunidense da modalidade que atuava, à época, no Orlando Pride[i]. Em que pese o destaque dado à notícia, sabe-se que os casos de atletas que conseguem conciliar a carreira esportiva com a maternidade são lamentavelmente raros. Dessa forma, o debate acerca do tema se mostra assaz necessário, destacando-se o significativo avanço nas disposições do Regulations on the Status and Transfer of Players (RSTP), que passarão a contemplar direitos às jogadoras gestantes, conforme alteração divulgada recentemente pela Federação Internacional de Futebol (FIFA)[ii].

Apesar de histórias pontuais como a de Alex Morgan[iii], é pouco usual que as atletas consigam conciliar a sua profissão com a gravidez. Afinal, seja por questões fisiológicas, por insegurança quanto aos direitos trabalhistas ou, até mesmo, por estigmas sociais, a maternidade costuma ser encarada como prejudicial à continuidade e à excelência da carreira esportiva. Nesse sentido, em pesquisa realizada pela FIFPro em parceria com a Universidade de Manchester em 2017, 47% das atletas consultadas apontaram a constituição de família como causa para encerrar a carreira prematuramente[iv].

À luz do ordenamento jurídico brasileiro, é garantida às empregadas-gestantes[v] uma licença-maternidade de, no mínimo, cento e vinte e dias[vi], conforme preceitua o artigo 322 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Durante o referido período, nos termos do artigo 72, §1º da Lei n. 8.213/91, percebe-se o salário mensal integral, a ser pago pelo empregador que, posteriormente, poderá compensar tal montante do valor a ser recolhido a título de Previdência Social. Diante da ausência de disposição específica na Lei Pelé (Lei n. 9.615/98), entende-se que tais direitos se aplicam às atletas que detiverem contrato especial de trabalho desportivo.

Discussão maior reside, porém, quanto à aplicação da estabilidade para as atletas. Com efeito, o artigo 10, II, b do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), disciplinou que as empregadas gestantes não poderiam ser dispensadas sem justa causa “desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto”. No entanto, há divergência quanto à aplicação desse instituto para contratos de trabalho por prazo determinado, como o é das jogadoras de futebol. Em que pese a Súmula 244 do Tribunal Superior do Trabalho (TST)[vii], editada em 2012, embasar posicionamento no sentido positivo, em recente julgamento a 4.ª Turma do TST[viii] se inclinou à modificação da Súmula em razãoda Tese de Repercussão Geral firmada pelo Superior Tribunal Federal (STF) no âmbito do Tema 497[ix] afastaria tal entendimento[x]. Assim, a questão não é pacífica, o que acentua a instabilidade que envolve a maternidade durante a carreira esportiva.

É importante apontar que a proteção jurídica que deve ser conferida no âmbito da maternidade não está restrita à garantia de licença-maternidade, de percepção de salários durante a gestação e de estabilidade ao contrato de trabalho. Nesse sentido, destaca-se que a CLT também preceitua o repouso remunerado de duas semanas no caso de aborto espontâneo (art. 395), bem como o direito a dois descansos especiais de meia hora para amamentação nos seis primeiros meses após o parto (art. 396), disposições essas que, em tese, poderiam ser levadas a cabo no contrato especial de trabalho desportivo.

Tais direitos, porém, estão condicionados à existência de relação formal de emprego, o que, como se sabe, nem sempre é a tônica das contratações de futebol feminino. Diante disso, bem como em face da multiplicidade de contratos de imagem e de contratos de patrocínio que regem o mercado esportivo, também deve ser conferida às gestantes segurança jurídica no âmbito cível. A esse respeito, merece destaque a mudança na política de licença maternidade para esportistas patrocinadas pela Nike, que determinou, após polêmicas, que ampliará em seis meses o patrocínio das atletas que tiverem filhos[xi]. Aponte-se, inclusive, que nada impede a exploração da imagem da jogadora durante e após a gestação, situação que poderia ser até mais explorada pelos clubes e pelos patrocinadores.

Tampouco se pode esquecer que a insegurança se torna ainda maior diante do caráter internacional do esporte, sendo certo que as atletas estarão sujeitas a regimes jurídicos diferentes a depender do território do clube a que estejam vinculadas. Foi justamente nesse contexto e, enquanto entidade reitora do futebol em escala mundial, que a FIFA implementou mudanças em seu RSTP com vistas a regulamentar direitos trabalhistas básicos às jogadoras gestantes.

Em linhas gerais, as alterações divulgadas englobam: (i) a obrigatoriedade de uma licença-maternidade mínima de quatorze semanas, remunerada com ao menos dois terços do salário; (ii) o direito à reintegração pelo clube após o término da licença-maternidade; (iii) o acompanhamento médico durante e após a gravidez e (iv) a estabilidade contratual durante a gestação. Não obstante, a proposta de redação será submetida à aprovação do Conselho da FIFA durante esse mês de dezembro de 2020.

Da mesma forma, será necessário acompanhar de perto a implementação de tais medidas na esfera das associações nacionais, bem como o amadurecimento jurisprudencial a respeito. Ademais, deve-se buscar a ampliação dos institutos protetivos já existentes, sobretudo no que se refere ao retorno das jogadoras à sua atividade. No entanto, é também inquestionável que as alterações propostas representam significativo avanço e, mais do que isso, confirmam que a FIFA está com os olhares voltados ao tema.

Em realidade, o que se almeja é que a gravidez seja encarada como uma situação natural, que não deve constituir óbice intransponível à carreira esportiva. Para tanto, é de suma importância que sejam garantidos direitos mínimos às atletas antes, durante e após a gestação. Além disso, mostra-se vital que haja o debate quanto ao tema, inclusive como forma de assegurar que as atletas tenham ciência de tais garantias, possibilitando-lhes a segurança jurídica necessária para se planejar e para tomar decisões quanto à sua maternidade. Nesse sentido, ainda que preliminares, as mudanças anunciadas pela FIFA deixam esperanças quanto aos próximos passos que serão tomados nessa tão necessária caminhada.

***

Alice Maria Salvatore Barbin Laurindo é estudante na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados. É coordenadora do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membra da IB|A Académie du Sport.

Beatriz Chevis é advogada associada do CSMV Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da USP. Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Universitária Paulista de Esportes.

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[i] MENDONÇA, Renata. Com 7 meses de gravidez, Morgan treina no campo e impressiona com chutes. Fevereiro de 2020. Disponível em <https://dibradoras.blogosfera.uol.com.br/2020/02/04/com-7-meses-de-gravidez-morgan-treina-no-campo-e-impressiona-com-chutes/>.

[ii] FIFA. FIFA steps up protection of female players and football coaches. Novembro de 2020. Disponível em <https://www.fifa.com/who-we-are/news/fifa-steps-up-protection-of-female-players-and-football-coaches>.

[iii] No âmbito nacional, pode-se mencionar o caso da zagueira Beta, do Grêmio, que revelou sua gravidez em julho de 2020 (GRÊMIO FOOT-BALL PORTO ALEGRENSE. Mãe atleta: zagueira Beta está grávida do primeiro filho. Julho de 2020. Disponível em <https://gremio.net/noticias/detalhes/23470/mae-atleta–zagueira-beta-esta-gravida-do-primeiro-filho>.

[iv] FIFPro. 2017 FIFPro Global Employment Report. Abril de 2018. Disponível em <https://www.fifpro.org/en/industry/women-s-global-employment-report>.

[v] Ressalte-se que, por força do artigo 392-A da Consolidação das Leis do Trabalho, instituído pela Lei 13.509/2017, o referido direito se estende às empregadas que adotarem ou obtiverem guarda judicial de criança ou adolescente.

[vi] Ressalte-se que, para as instituições que integram o programa Empresa Cidadã, a referida licença é majorada para cento e oitenta dias.

[vii] Afinal, a alínea III da referida Súmula disciplina que “A empregada gestante tem direito à estabilidade provisória prevista no art. 10, inciso II, alínea “b”, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, mesmo na hipótese de admissão mediante contrato por tempo determinado”.

[viii] RR 1001175-75.2016.5.02.0032, Relator Ministro Alexandre Agra Belmonte, acórdão publicado em 07/08/2020.

[ix] A tese fixada foi a de que “a incidência da estabilidade prevista no art. 10, inc. II, do ADCT, somente exige a anterioridade da gravidez à dispensa sem justa causa”. Assim, há quem entenda que a rescisão pelo término da vigência avençada para o contrato de trabalho constituiria causa anterior à gravidez, não havendo que se falar em estabilidade.

[x] Vide, nesse sentido, o Recurso de Revista n. 1001345-83.2017.5.02.004.

[xi] ISTOÉ. Após polêmica, Nike muda política de licença-maternidade para atletas. Agosto de 2019. Disponível em <https://www.istoedinheiro.com.br/apos-polemica-nike-muda-politica-de-licenca-maternidade-para-atletas/#:~:text=A%20Nike%20anunciou%20mudan%C3%A7as%20na,medida%20entrar%C3%A1%20em%20vigor%20imediatamente>.

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