Por Tom Assmar
Houve um tempo em que o Brasil escolheu ser feliz. O país descobriu a alegria e se permitiu sonhar com o futuro. A industrialização da economia, a consolidação da imprensa e dos meios de comunicação e a acelerada expansão urbana das suas capitais trouxeram ares deprogresso, moldando para sempre a mentalidade e o comportamento da geração que nos conduziria de volta à democracia ao longo da década de 1980.
O futebol, a música e a arquitetura foram testemunhas e protagonistas desse momento, mudando a história brasileira no intervalo de apenas 3 anos. No futebol, o país saía da tristeza da derrota de 1950 e ganhava seu primeiro título mundial em 1958 com Pelé e Garrincha; na música, a solidão e a melancolia do Samba Canção davam espaço à alegria solar da Bossa Nova, com Tom Jobim e João Gilberto lançando Chega de Saudade em 1959; em 1960, a inauguração de Brasília usava os traços da arquitetura de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer como pontes que nos conectavam à beleza e à modernidade. O país respirava uma contagianteesperança com o futuro, com 2 títulos mundiais seguidos (1958 e 1962), uma nova capitalnacional e um conjunto de canções que exaltavam a natureza, o amor, a paz e a felicidade.
Vai minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de Saudade – Tom Jobim e João Gilberto
Nossas escolhas mudaram daquela época para os dias atuais. O sucessivo descaso com a educação e a manutenção do fosso da nossa desigualdade social e econômica nos tornaram um país acostumado a conviver com a violência em todos os seus tipos e dimensões. No seu aspecto físico, ela está presente nas mortes diárias da juventude pobre e negra, nos crimes domésticos praticados contra mulheres e crianças, nas estatísticas dos acidentes de trânsito, no desrespeito à cidadania pelas forças do Estado ou no crescimento geográfico das áreas dominadas pelas milícias ou demais facções do crime organizado. No seu aspecto simbólico, ela será encontrada no apoioaos discursos de ódio, preconceito e discriminação, no desrespeito às instituições democráticas e republicanas, na defesa à facilitação do acesso às armas pela população civil, na destruição irresponsável dos nossos recursos naturais, nos argumentos irônicos dos que são contra a proteção aos direitos humanos e – no que se refere ao futebol – na absoluta incapacidade dos times, jogadores, dirigentes e torcedores entenderem que respeito ao próximo, convivência pacífica e cumprimento de normas não são apenas pilares fundamentais do pacto civilizatório, mas também e cada vez mais requisitos necessários ao desenvolvimento desse negócio. Gentileza não gera apenas gentileza … ela também valoriza o produto e aumenta a riqueza.
Não me amarra dinheiro não … mas a cultura
Dinheiro não … a pele escura
Dinheiro não … a carne dura
Não me amarra dinheiro não … mas elegância …
Beleza Pura – Caetano Veloso
Com seus erros e acertos, as principais entidades esportivas intensificaram campanhas e atitudes contra a violência nas suas esferas de atuação. Atos, gestos e punições contra o racismo ou demais formas de discriminação estão cada vez mais presentes nas arenas. Ainda que com suas lacunas, há hoje uma maior relevância de pautas ligadas aos direitos humanos; nos campeonatos europeus, é cada vez mais disseminada a prática de se iniciar uma temporada com o time adversário aplaudindo a entrada em campo do campeão do ano anterior em deferência à sua conquista; nos jogos de basquete na NBA, não apenas temos torcidas mistas como sequer existe a separação física entre mandantes e visitantes – estão todos juntos e misturados. A convivência consolida a nossa humanidade e potencializa o lado saudável das rivalidades. É ela que transforma o esporte em espetáculo, aumentandoo prazer de se assistir aos jogos e trazendo novas camadas de interesse a um evento que deixa de ser apenas esportivo e passa a ter um significado simbólico de convivência, interação e pertencimento social. E nesse momento a mágica acontece: o esporte cumpre seu papel na formação individual do ser humano e na indução coletiva da cidadania, ao mesmo tempo em que o negócio valoriza o produto e potencializa suas receitas.
O problema é que pode-se dizer o mesmo do ambiente contrário. A palavra ensina, mas o exemplo arrasta. Se a entidade associativa não investe no desenvolvimento coletivo, cada dirigente irá se preocupar apenas com o seu clube. Se o dirigente não respeita o regulamento, o jogador não precisa respeitar o árbitro. Se o jogador é violento com o seu colega de profissão, o torcedor reagirá da mesma forma contra o seu adversário. E assim, bem aos poucos, quase sem que se perceba, a violência gera desinteresse, o desinteresse gera indiferença e a indiferença desvaloriza o produto. É uma cadeia sucessiva de empobrecimento coletivo. Quando chegamos ao ponto de defender a torcida única como a melhor forma de ir ao estádio com segurança, é porque não conseguimos conviver sequer para nos divertirmos. E essa sim será a nossa maior derrota.
Não será fácil para o futebol brasileiro atrair a atenção, os interesses e os gastos das novas gerações de torcedores. Se quiser vencer a luta contra outros esportes ou outras formas de diversão, terá que ser capaz de se reinventar em vários aspectos. Hoje, já é cada vez mais difícil convencer nossos filhos a gastarem 90 minutos do seu tempo assistindo em uma única tela a um jogo de baixo nível técnico que pode terminar sem gols, com lances que ocupam apenas 60% do tempo de jogo, placares influenciados por erros de arbitragem e brigas ao final da partida.
O Brasil já foi capaz de encantar o mundo com sua Arquitetura, o Futebol e a Bossa Nova, magníficos legados criados por indivíduos geniais que foram capazes de captar o estado de espírito de uma nação e transformá-lo em riqueza artística, histórica e econômica. Nós já fomos a vanguarda. Já puxamos a fila. Se hoje estamos nos vagões de trás não é porque chegamos tarde, mas sim porque passamos a escolher lugares ruins. O conhecimento humano permite construir satélites ou destruir florestas, mas caberá a cada nação decidir qual dos dois será feito. A violência anda de mãos dadas com a ignorância, a exclusão e o atraso. A gentileza viaja acompanhada com o conhecimento, a cidadania e a civilidade. Quando pararmos na próxima estação, quem sabe teremos mais cuidado na hora de decidir em qual vagão iremos embarcar.
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Tom Assmar tem graduação e mestrado em Administração, e atua há mais de 25 anos com gestão, planejamento e finanças. Acredita que o futuro do nosso futebol passa necessariamente pela formatação de um produto que atenda aos interesses coletivos e pela qualificação da gestão dos clubes. É sócio do Futebol S/A.