No último dia 14 de outubro, foi publicada a Lei nº 14.073/2020, trazendo modificações ao texto da Lei Federal nº 9.615/98, a chamada Lei Pelé, além de alterar a Lei 13.756/2018.
Muito embora celebrada pelo Governo Federal como sendo a lei que concede, finalmente, a ajuda esperada pelo setor esportivo durante toda a crise do novo coronavírus, todos os artigos da lei que tratariam justamente das medidas de enfrentamento à pandemia, destinadas a atletas e a paratletas, foram vetados.
Já as medidas de enfrentamento pensadas para as entidades esportivas vieram, acompanhadas, todavia, de nítidas dificuldades à sua implementação e de exigências que intensificam o controle.
Os artigos que vão do 7º ao 9º da lei facultam às entidades do setor, excetuadas às da modalidade futebol, destinar até 20% dos recursos recebidos das loterias federais para o pagamento de débitos com entes federados, parcelamentos e transações tributárias, excluídas as multas de caráter penal.
Isso significa que quaisquer dos Comitês, Olímpico, Paraolímpico e de Clubes, assim como os clubes e as entidades de administração do desporto que lhe são filiados, além daquelas que administram o esporte escolar e o universitário, poderão pagar tributos devidos e acordos decorrentes de dívidas tributárias usando os recursos das loterias.
Curiosamente, impostos já eram legalmente pagos com recursos das loterias, como parte dos custos dos projetos executados. A compra de um equipamento esportivo no exterior, por exemplo, já era, via de regra, um fato gerador direto dos impostos e taxas de importação pagos pelas entidades quando da compra realizada.
Assim, acredita-se que o que legislador permitiu, a partir da nova lei, foi o pagamento de tributos como fim em si mesmo. Um projeto pode passar a ser idealizado, portanto, com a finalidade exclusiva de pagar dívidas, desde que tenha como credor a União, os Estados, Municípios ou o Distrito Federal.
Espantoso ainda o fato de que, mesmo neste ano atípico quando, sem nos darmos conta, novembro já bate à porta, tal benefício só possa ser utilizado até o dia 31 de dezembro de 2020, de modo que as entidades precisam estar atentas ao prazo que, de tão próximo, pode dificultar seu bom emprego, assim como pode vir a criar obstáculos ao seu acompanhamento e ao controle. Sistemas e regras internas das entidades mereceriam ser adaptados para abrigar essa nova realidade, dando conforto às entidades quanto à futura aceitação dos órgãos de controle externo que fiscalizam anualmente a utilização de tais recursos.
A lei aproveita ainda para reafirmar os compromissos de atendimento ao artigo 18-A e aos novos artigos 18-B, 18-C e 18-D da Lei Pelé, cuja inobservância ou a não adequação dos estatutos, nos prazos e modos estipulados, poderá acarretará a rescisão da transação permitida pela nova lei.
Como visto, os benefícios de serventia duvidosa, ainda vieram acompanhados de reforços ao controle externo, tendo em vista que cabe à Secretaria de Esporte do Ministério da Cidadania a verificação do atendimento.
Para aprimoramento da governança, que serve de título ao capítulo V, uma nova entidade, o Comitê Brasileiro de Clubes Paralímpicos (CBCP) passa a compor o sistema nacional do deporto e a se beneficiar também com recursos financeiros. Além disso, a legislação passa a contar com regras explícitas de responsabilização aos dirigentes esportivos.
Dirigente, nos termos da nova lei, é aquele que exerce, de fato ou de direito, poder de decisão na gestão da entidade, incluídos seus administradores, definição nova e que pretende garantir a responsabilização desses agentes.
Estes, independentemente da forma jurídica adotada pelas entidades geridas, passam a sofrer em seus bens (a lei usa a expressão “bens particulares”), as consequências em caso de abuso da pessoa jurídica. Assim, desconsiderada a personalidade jurídica, o que ocorrerá em caso de abuso, certas obrigações serão estendidas aos bens dos administradores beneficiados pelo excesso cometido, o que já deveria ocorrer por força do artigo 50 do Código Civil em vigor, mas recebe reforço na lei esportiva, para que não restem dúvidas quanto às suas consequências.
Também recebe reforço na nova lei a conhecida acepção de que dirigentes respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos por eles praticados e pelos atos de uma gestão que venha a ser considerada irregular ou temerária ou aqueles atos contrários ao previsto nos atos constitutivos da entidade. A novidade fica por conta da previsão expressa de que os dirigentes responderão solidariamente quando, cientes do não cumprimento dos deveres estatutários ou contratuais por seus antecessores ou pelos administradores de gestões anteriores, não comunicarem o fato ao órgão estatutário competente.
A despeito do que prescreve o Código Civil vigente no país, uma assembleia geral poderá passar a ser convocada por apenas 30% dos associados com direito a voto, desde que a ordem do dia seja deliberar especificamente sobre a instauração de procedimento de apuração de responsabilidade dos dirigentes, nos prazos e modos que traz a nova lei, havendo previsão expressa ainda de que medidas judiciais deverão ser tomadas em face dos dirigentes para ressarcimento dos prejuízos causados ao patrimônio da entidade, como se já não fosse possível tomar tal espécie de medida.
Como visto, muitas das previsões da lei já se encontravam disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro, contudo, mais que o texto, a intenção do legislador configura um passo além do poder público em afronta à garantia constitucional da autonomia.
Os pessimistas diriam “depois da tempestade vem a catástrofe”. Vestindo a roupa de ajuda ao sistema esportivo, a nova lei mais parece um saco de maldades trazido sem grande debate.