Por José Sarkis Arakelian e José Luis Camargo
Em agosto de 2021, o Congresso brasileiro aprovou a Lei Federal 14.193 (“Lei SAF”). A Lei SAF é o novo marco regulatório no futebol que está permitindo e estimulando a transformação das equipes de futebol em empresas privadas. Atualmente, os maiores e principais clubes brasileiros ainda são associações civis sem fins lucrativos. Sob a estrutura de entidade sem fins lucrativos, esses clubes sobreviveram por mais de 100 anos colecionando títulos e glórias, sem falar no aumento exponencial de sua base de torcedores. No entanto, atualmente, alguns desses clubes enfrentam um endividamento relevante e seu desempenho esportivo está muito aquém do seu potencial. E, passados quase três anos da entrada em vigor dessa nova lei, muitos desses clubes não se transformaram em entidades privadas, mesmo com a Lei SAF trazendo uma regra de renegociação das dívidas pré-aprovada, um regime tributário próprio com alíquota unificada, aprovação para remunerar seus administradores com salários de mercado, bem como mais segurança jurídica que permite atrair novos investimentos privados para fortalecer seus elencos e modernizar seus estádios e área de treinamento.
Um dos principais motivos para que a transformação em empresa privada (SAF) não tenha ainda ocorrido, é a resistência dos atuais dirigentes e torcedores em transferir a propriedade desses times para investidores privados. Dos 10 clubes da Série A que ainda permanecem operando como entidades sem fins lucrativos, muitos são clubes de massa com dezenas de milhões de fãs que resistem em aceitar o modelo de que a propriedade do seu time venha a ser detida por um indivíduo muito rico, um fundo soberano de um governo e/ou um fundo de private equity sem vínculos com o “seu” clube. Essa resistência se dá pela questão reputacional (por exemplo: o time da NFL Washington Commanders teve recentemente uma queda importante na sua popularidade devido às atitudes de seu então proprietário Daniel Snyder) ou foco predominante na valorização do ativo e obtenção de um ganho de capital no médio e longo prazo. Um exemplo é o caso do Manchester United adquirido pela Família Glazer nos anos 2000 por aproximadamente US$ 500 milhões e tendo sido vendido parcialmente no início deste ano com o time avaliado em aproximadamente US$ 5 bilhões. Nesse mesmo período em que o capital investido multiplicou por 10 vezes em dólar, o desempenho esportivo do Manchester United ficou muito abaixo desse estrondoso ganho financeiro da Família Glazer.
A questão que permanece é: existe uma solução viável para que clubes de futebol do Brasil se tornem uma entidade privada denominada Sociedade Anônima do Futebol (SAF) e não estejam vinculados a grupos financeiros privados cujo objetivo é vendê-los daqui alguns anos com o maior ganho de capital possível?
Além disso, é possível identificar um modelo de governança de sucesso no mundo esportivo em que as vantagens de transformação em SAF sejam capturadas, mas sem que se perca a natureza de uma gestão sem fins lucrativos e com foco nos resultados esportivos?
Green Bay Packers – um modelo de gestão a ser avaliado
Numa primeira análise, pode parecer difícil responder as duas perguntas acima associando a alguma equipe bem-sucedida no mundo dos esportes. Mas para surpresa de muitos, existe uma entidade esportiva americana na qual podemos e devemos nos debruçar para entender como funciona. Trata-se do time de futebol americano Green Bay Packers, da National Football League (NFL). O Green Bay foi fundado em 1919 na cidade de Green Bay, Wisconsin e é a terceira franquia mais antiga da NFL e com maior número de vitórias na história da liga. Seu modelo de clube empresa que não visa a distribuição de lucros a acionistas e, tendo como proprietários seus próprios torcedores, é único nos EUA (e talvez no mundo). Esse modelo de governança permite que sua fanática torcida tenha torcedores em todo o país, mesmo tendo sede numa pequena cidade do norte dos EUA e num mercado consumidor pequeno. Sua competitividade é inegável, tendo sido capaz de captar dinheiro junto a seus torcedores seis vezes em sua história, sendo a última em 2021-22 quando 176.160 torcedores adquiriram ações a US$ 300 cada uma, arrecadando um total de US$ 66 milhões. Vale destacar que somente 17% dos compradores eram residentes no estado de Wisconsin, o que mostra o impacto nacional do Green Bay. Após essa última rodada de investimentos, o Green Bay passou a ter mais de 537.000 acionistas[1]. Esses acionistas/ torcedores não compram as ações como investimento financeiro ou poupança, mas sim para participar das decisões em assembleias e fortalecer o legado e tradição do time através de sua torcida fanática.
Importante esclarecer que o Green Bay não tem ações listadas em bolsa de valores. Apesar dessas ações terem direito a voto e permitirem que seus acionistas elejam os seus administradores, elas têm restrição de circulação, sendo vedada a transferência ou venda a terceiros. A única exceção é a doação a herdeiros diretos, ou a sucessores em caso de morte. Caso o torcedor deseje vender, elas somente poderão ser recompradas pelo próprio Green Bay por um valor nominal e simbólico. A Comissão de Valores Mobiliários americana (Securities and Exchange Commission-SEC) emitiu um entendimento de que devido à essas características (incluindo a vedação à distribuição de lucros mencionada acima), a ação de emissão do Green Bay não é um valor mobiliário, ou seja, um investimento com valor econômico. Portanto as captações de recursos de torcedores (conhecidos como follow on) não estão sujeitas às regras gerais do mercado de capitais. Mesmo não sendo obrigado a seguir e registrar a oferta na SEC, o Green Bay segue os procedimentos de governança e transparência, como por exemplo a publicação do Memorando de Oferta e se comprometendo a utilizar os recursos levantados junto aos torcedores de certa maneira. Em sua última oferta em 2021-22, o Green Bay se comprometeu a usar os recursos obtidos juntos aos torcedores para melhorias na estrutura do seu famoso estádio chamado Lambeau Field.
Como curiosidade e indício de que o modelo do Green Bay é aderente à realidade dos times de massa do futebol brasileiro, numa pesquisa recente sobre o time da NFL preferido pelos brasileiros, o Green Bay ficou em primeiro lugar (vide Anexo 2). Também não é por acaso que foi escolhido para jogar o primeiro jogo da NFL a ser realizado no Brasil, em setembro de 2024.
Vale a pena transcrever o que o ex-Presidente Bill Clinton comentou sobre os Packers:
“Eu quero falar isso não só como Presidente, mas como cidadão. Em um mundo em que o esporte profissional se torna, me parece, em cada modalidade, cada vez mais transitório, em que os jogadores têm que cuidar de si mesmos no que pode ser um período de vida relativamente curto como atletas profissionais, e as pessoas mudam de time e de cidade, o Green Bay é algo especial, único, tradicional e comovente.
Os donos do time são pessoas das mais diversas origens e características. Os lucros são investidos de volta no time. Os jogadores e os técnicos têm uma relação única com os torcedores, que todos nós que assistimos aos jogos mesmo pela TV podemos sentir.”
Por conta do advento das redes sociais que aumentaram muito a visibilidade e a rapidez de propagação das informações e possibilidade de contato direto entre os clubes de futebol e seus torcedores, acreditamos que o modelo de governança e estrutura societária do Green Bay Packers pode ser extremamente positivo, tanto esportivamente como financeiramente em comparação a venda de participação acionária a um investidor financeiro. Investidor esse que não tem qualquer vínculo com o clube e seu objetivo primordial é vender a sua participação acionária no futuro com vultosos lucros.
Crédito imagem: AP Photo/Bart Young
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[1] https://www.packers.com/news/packers-sixth-stock-offering-adds-176-160-new-shareholders#
José Sarkis Arakelian
Doutor em Estratégias de Marketing pela FGV-EAESP.
Consultor e Professor de Estratégia em cursos de graduação e pós graduação na FAAP, FIA e Fundação Dom Cabral. Seus interesses em pesquisa se concentram em sistemas dinâmicos de criação e desenvolvimento de mercados.
José Luis Camargo
Advogado, conselheiro de administração, fellow na Harvard University, Advanced Leadership Initiative, onde desenvolveu pesquisa nas áreas de impacto social e governança (ESG). Também atua como investidor em startups e no apoio da profissionalização de organizações não governamentais. Foi um dos sócios fundadores de Madrona Advogados, tendo liderado mais de uma centena de operações de M&A e joint ventures em diversos setores da economia.