O esporte vive a utopia de buscar ser um ambiente livre de “manifestações políticas”. Nessa tentativa de viver uma “pseudo-neutralidade”, sempre contou com sua regulação interna. Acontece que com a Guerra na Ucrânia e as consequentes punições em cadeia ao esporte russo, este castelo de areia se desmanchou. O esporte tomou um caminho político, justificado pela proteção de direitos humanos.
Mas, afinal, a FIFA e o COI têm uma verdadeira política de direitos humanos?
Um contexto regulatório.
A Carta Olímpica, uma espécie de Constituição do esporte, veda na Regra 50 qualquer tipo de manifestação política e religiosa, naquela tentativa de manter um “ambiente saudável para a disseminação dos ideais desportivos”.
A FIFA também segue esse caminho. Veja o que diz o art 4 do Estatuto da entidade.
2. La FIFA se declara neutral en materia de política y religión. Se contemplan excepciones en los casos que afecten a los objetivos estatutarios de la FIFA.
Com base nessa ideal de “neutralidade”, as entidades, inclusive, deixaram de se posicionar em proteção dos inseparáveis direitos humanos em muitos casos, direitos esses reforçados nos regulamentos internos do esporte.
Basta uma revisão histórica para ver que o esporte vinha evitando punições aos países envolvidos em guerras e violações a direitos humanos. Para buscar exceções, volte até as distantes Primeira Guerra (Áustria, Alemanha, Polônia, Hungria, Bulgária e Turquia não foram convidadas para os Jogos da Antuérpia, em 1920) e Segunda Guerra (exclusão de Alemanha e Japão dos Jogos de Londres, em 1948).
De exemplar, as punições aplicadas pela FIFA e pelo COI à África do Sul, devido ao regime de segregação racial do Apartheid, ficando de fora das competições internacionais por quase 30 anos.
Mas, acabou por aí.
O Caso da Rússia
Agora, contra a Rússia uma avalanche de punições em efeito cascata. COI, Federações Internacionais, FIFA, UEFA, todas afastando não só as federações russas, como também banindo atletas do país de competições internacionais em movimento jurídico arriscado como o Lei em Campo trouxe nesta matéria.
Não se sabe precisamente a fundamentação jurídica para a exclusão, mas ela deve estar alicerçada na proteção de direitos humanos, como também no papel que o esporte tem como vetor da paz.
Acontece que esse necessário caminho foi ignorado pelo esporte incontáveis vezes. Exemplos recentes para não me alongar demais. Sede da próxima Copa do Mundo é o Qatar, a sede do Mundial de Clubes esse ano foi Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, o local da última Olimpíada de Inverno foi Pequim e da última Copa a Rússia, olha ela aí.
Aliás, as escolhas das sedes Qatar e Rússia já tinham trazido um problema gigante para a FIFA. Por violações reiteradas a políticas de proteção de direitos humanos nesses países, a entidade sofreu uma grande pressão externa por levar o futebol para lá.
Movimentos de direitos humanos, patrocinadores da entidade, sindicatos, estudiosos do esporte, todos se juntaram em um grande movimento condenando as escolhas da entidade.
Isso, aliado ao escândalo do Fifagate em 2015, desencadeou uma série de movimentos da entidade em direção a uma política de direitos humanos.
Política de Direitos Humanos da Fifa
Depois do tsunami que afastou a cúpula da entidade, prendendo alguns dirigentes como o brasileiro José Maria Marín, e com a imagem afetada pelas escolhas das sedes do Mundial de 2018 e 2022. a FIFA decidiu adotar uma política de defesa dos direitos humanos.
Diante desse movimento de pressão, e abalada por sérias denúncias de corrupção, a FIFA precisava mudar. Então, ela decidiu investir em uma agenda positiva, tendo os direitos humanos como protagonista.
A entidade-mor do futebol mundial incluiu em seu Estatuto, no art. 3, a previsão de que a “FIFA está comprometida com o respeito aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos e deverá empreender esforços para promover a proteção desses direitos”.
A entidade foi além. Ela encomendou ao professor John Ruggie, uma autoridade mundial no assunto, a elaboração de um relatório com recomendações para implementação o de uma política de direitos humanos, implementada em maio de 2017.
O relatório de Ruggie trouxe 25 recomendações e deu origem à Política de Direitos Humanos da FIFA, trata de:
– direitos trabalhistas;
– direitos de habitação;
– combate à discriminação;
– segurança nos grandes eventos;
– direitos dos atletas.
A FIFA estabeleceu expressamente compromisso de se articular construtivamente com os Estados para sustentar a sua política de direitos humanos, e a observância desses direitos passaria a ser critério para a escolha das sedes dos eventos da entidade.
No livro “Lex Sportiva e Direitos Humanos: Entrelaçamentos Transconstitucionais e Aprendizados Recíprocos”, o professor Vinícius Calixto explica:
“A escandalização gerada pela deflagração dos esquemas de corrupção aliada aos problemas envolvendo violações de direitos humanos, com destaque para a situação dos trabalhadores migrantes no Catar, e a necessidade de retomar a credibilidade da instituição fizeram com que a FIFA tomasse medidas para retomar a sua credibilidade, buscando promover maior democracia, transparência e accountability, e mudando sua postura frente à proteção e promoção de direitos humanos”.
A partir dessa nova política, a organização mandava um recado de que exigiria que as revisões de direitos humanos fizessem parte do processo de licitação de seus eventos. Inclusiva, ela conduziu análises de Marrocos e da América do Norte antes de determinar em 2018 que a Copa do Mundo de 2026 será nos Estados Unidos, Canadá e México, e mesmo assim criticou os Estados Unidos e o Canadá por falta de compromissos específicos com os direitos humanos.
Mas a associação com países que violam direitos humanos segue forte e a entidade ainda não conseguiu convencer a opinião pública de que realmente está comprometida com sua política.
O passo dado nesse momento de guerra vai exigir um acompanhamento para ver se o esporte tomou um novo caminho e um personagem vai ganhar importância: o Tribunal Arbitral do Esporte, o TAS.
O caminho passará pelo TAS
As Federações da Rússia e atletas já se manifestaram dizendo que irão recorrer dentro do movimento jurídico do esporte das decisões das entidades internacionais. A última instância desse movimento privado é o TAS.
Cada vez mais, esta corte arbitral vai ganhando força e legitimidade dentro do movimento transnacional do esporte.
Com uma jurisprudência reconhecida pelos integrantes da cadeia associativa do esporte, o TAS mostra como ele não só funciona como a última instância julgadora da Lex Sportiva, mas como também é importante na concretização das normas através de suas decisões.
A Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann no ambiente esportivo. Quanto mais legislação, mais competência judicial. Um ciclo, que se apresenta na relação circular entre legislar e julgar. “O procedimento jurisdicional deve cumprir e aplicar a lei, mas é através dele que o texto legal toma um sentido normativo” (1).
Estas decisões, ao lado de princípios gerais de direito e da proteção de direitos humanos, servem como base para afirmação da autonomia e reconhecimento estatal de um movimento legítimo e organizado.
Dentro dessa autonomia esportiva, o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) tem se consolidado como pilar importante da legitimação do movimento, provocando aprendizados que precisam ser entendidos. O caso envolvendo a Rússia deverá se tornar mais um marco do Tribunal.
Com a decisão, o esporte terá um caminho a seguir. Importante lembrar que a equidade é um princípio basilar da hermenêutica jurídica, não podendo ser esquecida em função da conveniência dos agentes envolvidos.
Como já ensinava Aristóteles um tempinho atrás, a justiça é disposição de caráter que faz com que os homens mais do que desejem o justo, pratiquem o justo. Este primeiro sentido de justiça é chamado de absoluto e corresponde à virtude em sua totalidade, enquanto uma parte da virtude, a igualdade, será objeto da justiça em seu caráter particular.
1 Luhmann, 2005
Crédito imagem: Reuters
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