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Há um direito à crítica da arbitragem? Reflexões entre a concentração de poder punitivo e admissão de valores secularizados

Ao longo da minha jornada como um fervoroso devoto da Justiça Desportiva, em especial no futebol, sempre me causou espécie a visão – de alguns – que a arbitragem seria com um ser (quase que) divino, cujas decisões quando contestadas mereceriam rechaços dos mais severos e exemplares.

Tive a oportunidade até aqui de atuar em casos em que árbitros, sejam eles centrais ou auxiliares, foram achincalhados, bem como excederam-se no exercício do poder punitivo que a lex mater do futebol lhes outorga: o jogo é disputado sob o controle de um árbitro, que tem total autoridade para cumprir as regras do jogo[1].

No entanto, percebo que este direito à crítica da arbitragem é reconhecido com exiguidade, prevalecendo, na imensa maioria dos casos, na ótica dos Tribunais Desportivos, uma postura de maior defesa da arbitragem, como uma espécie de política judicante.

A sensação, deveras, é que o árbitro seria uma peça imaculada que deve ser protegida a todo o custo!

Ao revés, em nossa opinião, o árbitro deve ser visto como um dos atores do sistema desportivo, tal qual o atleta ou técnico de futebol!

Não deve haver, ante uma Corte Desportiva, qualquer espécie de hierarquia ou privilégio, seja ele explícito ou implícito.

A Regra do Jogo já traz uma evidente – e necessária, friso – distinção entre os atores de uma partida de futebol. Outorga ao árbitro um poder imenso, sendo, in loco, fiscal da lei, juiz e verdugo! Ou seja, tem o poder de avaliar se a lei a disciplina desportivas estão sendo respeitadas e cumpridas adequadamente. Inclusive, nos casos em que padece alguma afronta.

Eis aí onde mora o perigo, ao meu sentir…Explico!

Observe-se que este poder punitivo que permanece ao crivo do árbitro central é lídimo e justo, vez que, ante o princípio do pro compettione, não podemos ter constantes interrupções para avaliar lances, sob pena de tornarmos o jogo de futebol enfadonho e interminável.

Exige-se do árbitro sempre bom senso. Mesmo nas hipóteses em que ele é parte, vide hipóteses fáticas onde a sua honra é aviltada.

Em recente julgamento perante a 5ª Comissão Disciplinar Nacional do STJD, onde atuei na defesa do atleta Daniel Sampaio, do E.C. Bahia, em 03 de fevereiro deste ano (Processo nº 852/2021), levei à consideração do sodalício o direito à crítica do conjunto de arbitragem como uma hipótese de exclusão da tipicidade, por conseguinte, da absolvição do referido atleta, que fora denunciado por suposta prática do artigo 258 do CBJD (reclamação desrespeitosa).

O colegiado acolheu tese, conforme voto do e. Relator, o Auditor Eduardo Mello, que entendeu ser plausível se admitir que a autoridade do árbitro não é achincalhada ou aviltada com emprego de expressões, embora até severas – porém, não ofensivas à honra -, que visem revelar uma insurgência ou insatisfação com a atuação da arbitragem.

Logicamente, com o reconhecimento deste direito aos atletas e técnicos não se está a outorgar carta branca para que possam, livre e irresponsavelmente, manifestar com desrespeito à autoridade disciplinar da partida. Ao revés, essa tese protege o árbitro das ofensas, contudo não o livra da livre manifestação, que é um seu direito constitucional, inclusive.

Com efeito, não há direitos ou garantias que sejam absolutos. Em qualquer espectro da vida em sociedade as pessoas têm limitações no seu atuar. No caso dos atletas e técnicos que se mostram insatisfeitos com marcações da arbitragem, não há infração em usar, adequadamente, do seu direito de livre expressão, desde que dentro de estreitas fronteiras de respeito à autoridade.

Portanto, o emprego de palavras ou frases deve ser contextualizado e voltado à contestação da marcação, sem que implique em ofensas às pessoas que integram o conjunto da arbitragem, ou mesmo que a crítica formulada transborde o bom senso.

A tese esgrimida não se extrairá por meio de fórmulas pré-concebidas e deverá ser colhida no acervo probatório. O seu reconhecimento por meio dos órgãos judicantes é a constatação de que os valores secularizados admitidos pela Constituição Federal de 1988 se aplicam integralmente no ordenamento jusdesportivo disciplinar. Uma prova irretorquível da submissão do direito desportivo disciplinar ao constitucional.

Apesar de inexistir causa excludente da tipicidade insculpida no Codex Punitivo do Desporto deste direito à crítica da arbitragem, se trata da interpretação mais justa e adequada que o intérprete da Lei do Desporto deverá aplicar ao caso concreto.

O tema ainda está longe de ser pacífico, pois a preservação da autoridade do árbitro sempre provoca o auditor da Justiça Desportiva, que se vê como bastião da ética e disciplina desportivas, a querer ser, nalgumas vezes até proativo, admitindo a condenação como alternativa a qualquer crítica contra ele feita. Não há como se ter a questão por viés puramente objetivo.

Todavia, como exposto, essa questão jusdesportiva é sempre candente, não se esgotará nessa singela coluna e importará em idas e vindas de posicionamentos dos órgãos judicantes do desporto!

Que siga o debate!

……….

[1] A Regra 5 do Futebol define os podres e deveres do árbitro. Mais adiante, convém observar os comentários feitos acerca das medidas disciplinares na Regra 12: O árbitro tem autoridade para aplicar sanções disciplinares desde o momento em que entra no campo de jogo para a inspeção que antecede a partida e até que saia do campo, após o final do jogo (inclusive durante os tiros livre da marca penal). Disponível em: < https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201909/20190902145532_358.pdf> Acessado em 23 fev 2021.

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