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Habeas Corpus na Justiça do Trabalho como medida para dissolução de vínculo de emprego de atleta

Uma “tempestade perfeita” se formou em muitos clubes de futebol no Brasil, tendo em vista a crise financeira provocada pela pandemia bem como a necessidade de se promover reduções salariais de atletas profissionais, além da ausência de receitas em razão da paralisação das competições. É bem verdade que alguns clubes já contavam com um histórico de gestão pouco profissional há décadas, a fazer com que a atual crise fosse o golpe de misericórdia para determinadas agremiações.

Nas últimas semanas foram muitos os casos relatados de reclamações trabalhistas movidas por atletas em razão de alegação de não cumprimento de contrato, sendo que nestas hipóteses é muito frequente o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, com a finalidade da questão ser decidida o quanto antes pelo Juiz do Trabalho, em caráter liminar.

É inevitável que o deferimento ou indeferimento da medida liminar provoca o descontentamento de uma das partes e a consequente proliferação de recursos variados, entre eles, mandado de segurança, agravo regimental, recurso ordinário, tutela de urgência e outros.

Há mais de uma década, aproximadamente, que muitos atletas se valeram da impetração de Habeas Corpus no Tribunal Superior do Trabalho, após manifestação do Tribunal Regional do Trabalho quando este negava o pedido de rompimento imediato do vínculo de emprego (e desportivo)[1].

Importante ressaltar que o princípio da liberdade goza de ampla proteção. Com o passar dos tempos, importantes instrumentos foram responsáveis pela atual conotação do que se convencionou chamar de “direitos humanos de primeira dimensão”, dentre eles a Magna Carta (1215), o Habeas Corpus Act (1679), o Bill of Rights (1688), a independência Norte-Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789).

Portanto, trata-se o Habeas Corpus de uma ação constitucional prevista nos artigos 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, e 647 e seguintes do Código de Processo Penal e será concedido sempre que alguém sofrer ou estiver na iminência de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Sua gênese remonta ao Direito Romano, sendo que habeas significa ter ou tomar, e corpus é corpo.

Desde o célebre “Caso Oscar”, de relatoria do Ministro Caputo Bastos, que o TST passou a assegurar o cabimento desta importante e vital medida, como forma de viabilizar a liberdade do atleta para se transferir para outra agremiação desportiva, enquanto que a questão financeira permaneceria sub judice até o trânsito em julgado da ação.

Depois deste sucederam-se os casos Riascos Vs. Cruzeiro[2], Ítalo Barbosa Vs. Gama[3], Marcelinho Paraíba Vs. Inter de Lages[4], Pedro Antônio Lopes Vs. São Carlos[5]; Vinícius Diniz Vs. São Carlos[6]; Zeca Vs. Santos FC[7] e o caso Gustavo Scarpa Vs. Fluminense[8], sendo este o último no qual foi deferida a liminar para que ele pudesse jogar onde desejasse, tendo escolhido o Palmeiras para este propósito.

Naquela ocasião o Ministro Alexandre Agra Belmonte afirmou na ementa da decisão que “manter atleta aprisionado a um contrato deteriorado pela mora contumaz atenta contra os princípios da boa-fé e da liberdade de trabalho, este com assento constitucional, mormente quando texto expresso de lei o liberta. Interpretação sobre o princípio da imediatidade capaz de levar ao absurdo, corresponde a verdadeira imposição de suportabilidade de condições de trabalho atentatórias da dignidade da pessoa humana. O alvará de soltura da prisão contratual se impõe nessas circunstâncias.”

Todavia, naquele mesmo ano de 2018 a jurisprudência do TST sofreu uma guinada de 180º, tendo em vista que após mudança de composição da Subseção Especializada em Dissídios Individuais-II (SBDI-II), órgão responsável pelo julgamento de Ações Rescisórias, Mandados de Segurança e Habeas Corpus, restou definido que o cabimento de Habeas Corpus estaria restrito à liberdade de locomoção primária.

Em 19 de novembro de 2018 em processo no qual figurava como relator o ilustre Ministro Alexandre Luiz Ramos, restou decidido, por maioria, que contraria as decisões do STJ e do STF o entendimento de ser cabível o habeas corpus para discutir cláusula contratual de atleta profissional, como decorrência de inadimplemento de obrigações do clube empregador. Além disso, restou considerado que o writ havia sido utilizado como sucedâneo recursal e substitutivo de decisão a ser proferida em reclamatória trabalhista, âmbito apropriado para a análise probatória do descumprimento do contrato. Por fim, restou assentado que a utilização exagerada da medida reduz a sua importância e banaliza a ação.

O julgamento em questão ocorreu nos autos do HC 1000678-46.2018.5.00.0000, que tinha como paciente o atleta Felipe Camargo de Souza e como interessado o Figueirense de Santa Catarina.

É importante ressaltar que nada obstante esta referida decisão e o substancioso voto proferido pelo Ministro Relator, a questão ainda não está pacificada no âmbito da Corte Trabalhista e ainda merecerá reflexões e debates, até mesmo porque a Justiça do Trabalho possui competência constitucional para apreciação de habeas corpus, quando o ato questionado envolver matéria afeta a sua jurisdição.

Com efeito, deve prevalecer o entendimento mais amplo do universo de aplicação do instituto do habeas corpus, que encontra eco na atuação de um dos grandes juristas brasileiros, o baiano Rui Barbosa, defensor da versão liberal desse instrumento. Além da questão da locomoção, o Águia de Haia entendia que o uso do writ poderia ser concedido quando qualquer tipo de violência ou ameaça à liberdade da pessoa fosse cometida, inclusive no caso da liberdade de manifestação de pensamento.

Tal fato não quer dizer que o basta a impetração desta medida para o deferimento da liminar e o rompimento do vínculo, mas apenas assegurar o seu cabimento e partir daí cada caso deverá ser analisado individualmente, dentro das balizas e limites impostos pela legislação desportiva.

Deve ser ressaltado que o clube que detinha os direitos federativos deste atleta não sairá prejudicado, na medida em que a reclamação trabalhista seguirá o seu fluxo e nela será apurado o responsável pela ruptura do vínculo de emprego, atleta ou clube e a cada um restará o dever de indenizar com o pagamento da cláusula indenizatória ou compensatória, além de outros consectários porventura devidos.

A restrição do cabimento do Habeas Corpus importa em um cerceio do direito de defesa do atleta profissional, que exerce uma atividade cheia de peculiaridades, com interferência natural e justificável de sua vida íntima, com tempo de duração muito abreviado, onde 3 ou 4 anos de espera para a conclusão do processo pode significar o fim da carreira de um atleta.

……….

[1] A partir da edição da Lei Pelé no ano de 1998, o vínculo desportivo passou a ser acessório ao vínculo de emprego (art. 28, parágrafo 5º, Lei n. 9.615/1998)

[2] HC 26452-66.2016.5.00.0000

[3] HC 17552-94.2016.5.00.0000

[4] HC 5451-88.2017.5.00.0000

[5] HC 1000225-85.2017.5.00.0000

[6] HC 1000312-41.2017.5.00.0000

[7] HC 1000326-25.2017.5.00.0000

[8] HC 1000462-85.2018.5.00.0000

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