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Hacks no Free Fire: a Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo

Todo jogador, ao ingressar num jogo eletrônico pela primeira vez – e, às vezes, a cada atualização – se depara com extensos ‘Termos de Uso’. Não há alternativa: ou aceita, ou não joga. Assim, estimo (sem medo de errar) que em 100% (cem por cento) das vezes o jogador rola os Termos de Uso na velocidade da luz apenas para poder clicar em ‘declaro que li e concordo’ e iniciar, logo, sua diversão.

É inegável, entretanto, que a relação entre jogador e a Publisher do jogo é de consumo. E, no Brasil, a proteção ao consumidor deriva da Constituição Federal e é regida por uma das normas mais vanguardistas do mundo na matéria o Código de Defesa do Consumidor.

Pressupõe-se, naturalmente, que uma relação de consumo seja desigual, tendo de um lado o fornecedor de um produto, bem ou serviço e, do outro, uma pessoa física vulnerável técnica, jurídica e economicamente em face daquele.

Assim, fato é: os ‘Termos de Uso’ não servem e não superam as disposições protetivas do CDC, mesmo com o famoso ‘declaro que li e concordo’. Cabe ao Judiciário, portanto, avaliar, caso a caso, se as cláusulas ali estabelecidas unilateralmente pela Publisher são abusivas, neste que é um verdadeiro contrato de adesão celebrado entre ela e jogador (‘usuário’).

Pois bem.

Em breve pesquisa de jurisprudência, usando-se apenas como exemplo o jogo Free Fire, da Publisher Garena, emergem inúmeras ações judiciais de consumidores requerendo, por diversos motivos, a reativação de suas contas, alegadamente banidas pela Publisher por violação dos ‘Termos de Uso’ do jogo.

Antes de prosseguir, porém, é importante realçar que o Free Fire é um jogo de grande popularidade e capilaridade no Brasil, capaz de atrair jogadores de todas as classes sociais. O jogo é mobile e seu software funciona, praticamente, em qualquer dispositivo celular disponível no mercado. Histórias como a de Nativa, por exemplo, inspiram inúmeros jovens a adentrarem e participarem assiduamente do jogo:

https://www.youtube.com/watch?v=1OEhxNimpFw

Some-se a isso, o tempo em que o jogo está disponível no mercado brasileiro influi para uma maior amostragem de situações de potencial litígio entre os usuários e a Publisher sua enorme popularidade e grande variedade de jogadores.

O tempero final é, justamente, a vertical de microtransações dentro do jogo, que incentiva o comércio de skins e itens aos jogadores, estimulados a comprar tais aparatos para personalizarem seus personagens. Se há gasto (ou investimento) financeiro por parte do usuário, há um maior estímulo pela judicialização caso este tenha sua conta banida ou suspensa, unilateralmente, pela Publisher em caso de alegada violação dos ‘Termos de Uso’.

Tais elementos expliquem, talvez, porque numa breve pesquisa utilizando o termo ‘Free Fire’ no site do Tribunal de Justiça de São Paulo, aba consulta de jurisprudência, são encontrados 101 (cento e um) resultados. Em português claro: são 101 casos em segunda instância, tramitando sob o procedimento comum. Do resultado estão excluídos os casos em Colégio Recursal e aqueles ainda em primeira instância, tanto no rito comum quanto no rito sumaríssimo (Juizado Especial Cível).[1]

Para o presente texto foram escolhidos os 08 (oito) primeiros acórdãos das Câmaras do TJ-SP resultantes da pesquisa de jurisprudência pelo termo ‘Free Fire’, todos eles julgados em 2023. Examinou-se apenas o teor de cada acórdão, sem avaliação processual ou do conteúdo das provas produzidas. Em linhas gerais:

  1. 7 (sete) ações foram motivadas em razão da desativação (banimento) ou suspensão das contas dos jogadores consumidores em razão de violação dos ‘Termos de Uso’; apenas uma delas se referia a um jogador que teve a conta alegadamente ‘hackeada’ por outro usuário;
  2. Em todas as ações o Google figurou como corréu, juntamente da Publisher, sob o argumento de que o jogo é adquirido (baixado) pela Play Store, loja do Google nos celulares Android;
  3. Em 100% (cem por cento) dos casos os jogadores haviam despendido dinheiro dentro do jogo adquirindo itens aos seus personagens.

Feita essa análise inicial, é importante frisar que em todos os casos o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu estar diante de uma relação de consumo. Assim, o ônus de prova é atribuído, inicialmente, à Garena, a quem competiria, portanto, comprovar a violação dos Termos de Uso por parte do jogador.

Na maioria dos casos, porém, o Tribunal entendeu que o sistema da Garena, somado a outros elementos de prova, como denúncias de jogadores e mensagens/e-mails trocados com o jogador acusado serviriam como prova suficiente da violação aos Termos de Uso. O quadro resumo abaixo elucida o resultado final:

Número Motivo Meio de Prova Vencedor
1032527-84.2020.8.26.0002, 27ª Câmara Conta banida por uso de GG Script Hack. Laudo Pericial +  denúncias de outros jogadores. Garena, julgado em 08/08/2023.
1005479-16.2020.8.26.0176, 32ª Câmara Conta banida por uso de Hack inespecificado no acórdão Relatório do sistema da Garena + denúncias de outros jogadores. Garena, julgado em 14/09/2023.
1019555-82.2020.8.26.0196, 35ª Câmara Alegação de conta hackeada por terceiros que teriam realizado compras indevidas. TJ-SP entendeu que, apesar da relação de consumo, faltaram elementos por parte do autor a demonstrar o hack, cf. artigo 373, I, do CPC. Garena, julgado em 14/06/2023.
1049803-

94.2021.8.26.0002, 23ª Câmara

Conta banida por uso de Hack ‘Mod Menu – Lorazalora’ Relatório do sistema da Garena + denúncias de outros jogadores. Garena, julgado em 24/05/2023.
1000853-52.2020.8.26.0111, 35ª Câmara Conta banida por uso de Hack inespecificado no acórdão. Anulado para a produção de prova pericial. N/A, julgado em 27/04/2023.
1002378-32.2021.8.26.0306, 36ª Câmara Conta banida por uso de Hack em que linhas saíam das costas dos adversários para possibilitar visualização a longa distância Relatório do sistema da Garena + denúncias de outros jogadores + e-mails enviados pelo jogador reconhecendo o equívoco. Garena, julgado em 13/04/2023
1002698-79.2021.8.26.0210, 35ª Câmara Conta banida. Jogador alega ter usado o Bluestacks, emulador para PC, o que seria lícito. Anulado para a produção de prova pericial, com expressa exclusão do Google. N/A, julgado em 06/03/2023.
1003562-59.2020.8.26.0176, 34ª Câmara Conta banida por uso de Hack inespecificado no acórdão. Relatório do sistema da Garena + denúncias de outros jogadores. Garena, julgado em 13/02/2023

Em todos os casos, frise-se, o dinheiro virtual – moedas – e as vantagens da conta foram confiscadas e permanentemente excluídas, bem como foi negada a sua conversão em dinheiro, assim como rejeitado o reembolso pelas despesas havidas, tudo em conformidade aos ‘Termos de Uso’.

Portanto, a despeito da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, apenas em 03 (três) casos o Judiciário entendeu ser necessária a prova pericial, conferindo força probante aos relatórios sistêmicos da Garena e levando em consideração a realização de denúncias por parte de outros jogadores acerca do uso de variadas formas de Hack dentro do jogo.

Ante o exposto, das 8 (oito) ações trazidas por amostragem na superficial análise acima, em 6 (seis) casos houve vitória por parte da Garena, enquanto em outros 2 (dois) impôs-se a anulação do feito e o retorno à primeira instância para realização de laudo pericial.

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[1] Obs: no rito sumaríssimo não é permitida a produção de prova pericial, em conformidade à Lei nº 9.099/95.

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