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Haverá um Uber no esporte?

Meus leitores devem ter reparado que a coluna ficou sem novos artigos nas duas últimas semanas. Houve um pequeno recesso no portal, e preferimos voltar agora.

Parei no último texto falando a respeito do caráter transnacional do Direito Esportivo, sua organização baseada na preservação da autonomia do sistema, e anunciei que iríamos passar à análise do sujeito dessa área jurídica. Ocorre que alguns colegas que acompanham os artigos pediram que antes eu explicasse melhor como se dá a organização global do esporte, e aprofundasse um pouco mais nos termos “Pirâmide Olímpica” e “Ein Platz Prinzip”, que eu apenas havia mencionado anteriormente.

Para começar, uma pergunta: existem entidades e competições relevantes fora dos movimentos olímpico e paralímpico?

Claro que sim. Todos certamente já se lembraram de esportes fortes nos EUA, como o futebol americano e o MMA [o primeiro, uma modalidade estadunidense stricto sensu, enquanto o segundo é um esporte genuinamente brasileiro, porém desenvolvido mercadologicamente por lá]. Os dois não compõem a Pirâmide Olímpica, que ilustra a organização transnacional de parte majoritária das modalidades esportivas em um sistema verticalizado que engloba desde os atletas, membros de comissões técnicas, árbitros, clubes, até as organizações locais, continentais e mundiais de cada esporte, os comitês olímpicos nacionais, os dirigentes etc. No ápice dessa pirâmide está o Comitê Olímpico Internacional (COI) e, juridicamente falando, a Corte Arbitral do Esporte (CAS), os dois com sede na Suíça. Todos os componentes desse sistema, desde a base da pirâmide, necessitam estar relacionados (1) a modalidades esportivas incluídas no programa olímpico ou reconhecidas pelo COI e (2) a entidades que sejam encadeadas ao sistema COI, ou seja, que “estatutariamente” estejam acolhidas formalmente no Movimento Olímpico.

Do ponto de vista normativo, toda essa regulação deve ser buscada na Carta Olímpica, verdadeira constituição transnacional do Movimento Olímpico. Ninguém, sejam pessoas, sejam entidades, faz parte dessa Pirâmide ou participa de suas competições se não aquiescer em cumprir os mandamentos da Carta Olímpica.

Um primeiro fundamento da estruturação global do esporte é o “voluntarismo”. Nenhum atleta ou suas entidades são obrigados a se unir ao Movimento Olímpico, a se vincular à Pirâmide Olímpica. Há o que denomino por “direito de ficar fora”, muito parecido com o que acontece em grande medida no Direito Internacional Público (voluntarismo estatal).

O Movimento Olímpico é todo composto, portanto, por um mecanismo de adesão voluntária à estrutura de gestão piramidal e à Carta Olímpica. Mas se resolver aderir, o respeito às normas do movimento e à hierarquia da Pirâmide se impõe. Essa adesão se dá por meio de (1) por parte dos atletas, quando ele se filia a uma organização componente do Movimento Olímpico ou, em nosso jargão nacional, a partir do momento em que ele se “federa”, se torna “federado”, e, assim, passa a se vincular obrigatoriamente à Carta Olímpica e todas as normas abaixo dela, sejam as relativas à disciplina e competições em sua modalidade, sejam aquelas relacionadas ao seu vínculo com a entidade que administra seu esporte e suas superiores; e (2) quando a entidade local, nacional, continental ou mundial adere ao Movimento Olímpico e é obrigada a apor em seus estatutos o vínculo à Carta Olímpica e às entidades a ela superiores na Pirâmide, inclusive quanto à “jurisdição” da CAS.

A essa forma de organização verticalizada no Movimento Olímpico, que, sem muitas diferenças, replica-se no Movimento Paralímpico, se emprega o termo alemão “Ein Platz Prinzip”. Grosso modo, significa que cada entidade ou cada pessoa tem seu lugar nesse sistema. Para entender melhor, vamos ao futebol. O Estatuto da FIFA dispõe que a ela só se pode vincular uma confederação por continente (p. ex., a Conmebol para nossa região e a UEFA para a Europa). Do mesmo modo, também normatiza que cada confederação somente reconhecerá uma associação nacional por país (CBF no Brasil, AFA na Argentina etc.). Vejam como cada entidade tem seu lugar nessa pirâmide, por critérios jurídico-regionais.

Se um atleta de futebol quiser um dia disputar uma Copa do Mundo FIFA ou os Jogos Olímpicos, necessariamente precisa estar “federado” a uma entidade que tenha seu lugar na Pirâmide Olímpica. Se não quiser, tem o “direito de ficar fora”. Do mesmo modo ocorreria com a organização esportiva que se dedique ao futebol, mas não busque as competições relacionadas à FIFA e suas filiadas, ao Movimento Olímpico como um todo.

Ficou claro que o interesse tanto de atletas como de entidades esportivas está na relevância das competições que estejam relacionadas às organizações componentes da Pirâmide Olímpica. O futebol americano, a título de ilustração, criou, por meio de entidades dos EUA, campeonatos por si só atrativos o suficiente e não necessitam estar no Movimento Olímpico para a sua continuidade.

O mesmo ocorre com o MMA e os chamados e-sports (esportes eletrônicos). Ocorre que, diferentemente do futebol americano, essas modalidades têm buscado recentemente sua adesão à Pirâmide Olímpica, almejam um dia fazer parte do programa dos Jogos Olímpicos. Se isso ocorrer, será por decisões relacionadas às pretensões tanto esportivas como de mercado.

Um dos problemas principais do COI para recepcionar esses novos esportes é justamente o da autonomia. Como hoje existe um estreito vínculo de competições e, principalmente, do controle da “linguagem esportiva” a empresas que mantêm esses esportes, especialmente quanto ao controle comercial de franquias de campeonatos e softwares, há dificuldade de aderirem à Pirâmide Olímpica, de estarem com o seu lugar na Pirâmide, como diz o “Ein Platz Prinzip”. O problema central deles nessa pretensão é a autonomia esportiva, portanto.

E é justamente aqui que poderá um dia existir um movimento disruptivo no esporte, nos moldes do que vimos com os fenômenos Uber nos transportes, Airbnb na hotelaria, iFood na alimentação… Em algum momento esse encadeamento de entidades e pessoas pode se enfraquecer ou até mesmo perecer se uma disrupção romper a lógica centenária como se compõe a Pirâmide Olímpica. Além dos valores olímpicos, o que mantém o movimento em pé é o interesse, a relevância das competições que ocorrem nesse sistema. Se algo ocorrer no sentido de trazer um novo tipo de organizar eventos esportivos competitivos, o “Ein Platz Prinzip” se desestrutura.

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