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História da Justiça Esportiva – II

Na última edição desta coluna, passei a contar a história da justiça esportiva brasileira. Dois fatos importantes que já relatei e que venho repetir para servir como base aos novos fatos que trarei aqui: (1) não havia tribunais de justiça esportiva antes da intervenção do Estado Novo sobre os esportes; e (2) o Decreto-lei n. 3.199, de 1941, ato legal de intervenção estatal também não criou uma justiça esportiva.

Assim, o ato inicial de fundação da justiça esportiva em nosso país foi a Resolução do Conselho Nacional de Desportos (CND) n° 4, de 1942, que obrigou as federações estaduais a criarem seus próprios tribunais de penas, segundo modelo argentino.

Jorge Miguel Acosta Soares em 2015, em sua tese “Justiça Desportiva – o Estado Novo entra em campo (1941 – 1945)”, narra as funções que haviam sido impostas às federações esportivas quanto à matéria de disciplina e competições esportivas:

A Resolução n° 4/42 determinou que cada uma das federações do país deveria criar um código disciplinar e de penalidades próprio, que serviria de parâmetro para a atuação dos juízes do tribunal, devendo entrar em vigor antes dos campeonatos de 1943. As punições aplicadas aos infratores seriam: multa, suspensão ou expulsão definitiva do futebol, e devendo punir todos os casos de indisciplina, de agressão, física ou verbal, ameaça, tentativa ou atos de corrupção, assim como o desacato e a desconsideração a qualquer autoridade do esporte. Os membros do tribunal passaram a ter competência privativa para julgar e estabelecer punições às transgressões do estatuto da sua respectiva federação, sendo puníveis: técnicos, treinadores, massagistas, auxiliares ou empregados das associações. […] As penas atribuídas aos árbitros, para que não lhes fosse retirada a autoridade dentro de campo, deveriam ser sigilosas.

Percebe-se que a criação dos tribunais de pena obedecia às seguintes características:

1. inexistência de um tribunal nacional de penas, o que seria hoje um superior tribunal de justiça esportiva; somente as federações estaduais mantinham seus órgãos esportivos julgadores;
2. havia a previsão da sanção de “banimento” do esporte, ou seja, de afastamento definitivo do atleta ou demais esportistas do ambiente do esporte;
3. previu-se a punição à corrupção no esporte;
4. já se sancionava o “desacato” às autoridades esportivas;
5. previu-se o julgamento de árbitros, porém com o sigilo das punições.

Não obstante a extensão desses poderes “judicantes” a cargo dos tribunais de penas das federações esportivas dos Estados, o CND se autoempoderou por meio da referida Resolução para ser um “tribunal superior” de anulação/anistia dos atos daqueles órgãos estaduais de julgamento. É o que também nos conta Acosta Soares: “Pela resolução, o CND teria poder para declarar anistia ou comutar as penas aplicadas pelos tribunais”.

Reparem que esses poderes extraordinários foram criados, repiso, por um ato do próprio CND, sem previsão em decreto ministerial ou mesmo no Decreto-lei n. 3.199, de 1941, que criou o sistema legal do esporte no Brasil. O CND a esta altura continuava sob o comando de Luis Aranha, o mesmo prócer getulista que presidia a Confederação Brasileira de Desportos – CBD.

Não obstante tamanha força que já se dava ao CND no comando da estrutura esportiva e, a partir de sua Resolução de 1942, também como órgão superior de justiça esportiva, a disciplina sobre os atletas partiu para o inacreditável poder de prisão, como contei em meu livro “Constituição e Esporte no Brasil” (Ed. Kelps, 2017). O que se percebia é que o recurso à repressão física contra as indisciplinas por parte de dirigentes e atletas não cessavam no que se viu no decreto-lei acima.

O CND, conforme narra Lyra Filho (Introdução ao Direito Desportivo, p. 197), obrigava que os membros das seleções esportivas nacionais no exterior respeitassem ao chefe da delegação, a quem incumbia exclusivamente dar declaração à imprensa. Se ferissem esta prescrição ou quaisquer outras ordens do chefe de delegação concernentes à disciplina ou ordem esportiva, os membros da delegação poderiam ser reclusos por até cinco dias por sanção aplicada pelo referido chefe.

Essas sanções, conforme o próprio autor, eram previstas no Regimento Interno do CND e estavam de acordo com o art. 12 do referido Decreto-lei de 1943. Ocorre que não se vê no rol de punições dispostas na norma esta possibilidade de “prisão administrativa” dos membros de delegações brasileiras no exterior. O que ali se prescrevia eram multas, suspensões e eliminações definitivas das atividades esportivas.

Lyra Filho defendia o poder de polícia do CND sobre as atividades esportivas, praticantes e gestores (id. ibid., pp. 199-200):

No uso de suas funções delegadas, cumpre-lhe, ainda, expedir, anualmente, alvarás de licença para funcionamento das entidades desportivas e vigilar o funcionamento dessas referidas entidades, a fim de lhes assegurar disciplina constante, administração correta e funcionamento regular…

Como passarei a narrar em próximas edições, o poder disciplinar às mãos da justiça esportiva e do Estado brasileiro passavam a agir sobre a própria liberdade individual dos praticantes de esporte, sobre os próprios corpos dos atletas.

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