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Ihering, Piketty e The English Game: todos ajudam a explicar como o futebol passou a ser um esporte de todos

Transformações estruturais dificilmente são tranquilas. Exigem coragem, mecanismos de pressão, força coletiva e apoio político. Isso vale para nossa vida em sociedade e para o esporte. Trago aqui uma história de uma revolução do futebol, que nos remete ao pensador do direito Ihering e ao recente livro do economista Piketty.

Saiu o novo livro do francês Thomas Piketty, Uma Breve História da Igualdade. Em resumo, ele constata o que precisa ser repetido. Nunca foi por empatia ou senso de justiça. A redução da desigualdade sempre dependeu da força, através da mobilização política e da construção jurídica através de um Estado de Direito.

Ou seja, o status quo cria mecanismos que reinventam alternativas para preservar privilégios em relação `maioria menos abastada. Eles fingem mudar, mantendo a estrutura que apresenta apenas funis de transformações reais.

Mesmo assim, essas pequenas conquistas só foram possíveis através de mobilizações coletivas, que provocaram Irritações que obrigaram a abertura de diálogos, até por uma questão de sobrevivência.

O livro me faz lembrar de Rudolf Von Ihering, um dos principais nomes do direito. Para o jurista alemão, o cerne das transformações estaria na luta. Escreve ele, no livro A Luta Pelo Direito:

Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta; todas as regras importantes do direito devem ter sido, na sua origem, arrancadas àqueles que a elas se opunham, e todo o direito, direito de um povo ou de um particular, faz presumir que se esteja decidido a mantê-lo com firmeza”.

Ihering e Piketty me fazem lembrar de uma grande transformação vivida pelo futebol, quando a elite precisou entregar uma parte do jogo para a base da pirâmide, até como estratégia de preservação de poder.

Quando o povo passou a fazer parte do jogo

A história é contada na série The English Game, à disposição na Netflix. Ela se passa no final do século XIX, e tem o futebol como fio condutor de uma história muito mais sobre luta de classes e tensão social. E, mesmo assim, traz uma lição importante a todos os dirigentes da atualidade: entendam o momento, ou os fatos o derrotarão.

O personagem que teve a inteligência de entender momento, dialogar e ceder para manter o poder foi Arthur Kinnaird. Um craque da seleção inglesa à época, e um dos líderes da associação que controlava o jogo e as regras do futebol.

O futebol era um esporte dominado e praticado pela elite inglesa. E, de maneira inteligente, para manter o controle do esporte, o profissionalismo era proibido. O futebol crescia em popularidade entre os operários e pessoas das classes mais baixas.

Para quem (ainda) não viu, a série conta a chegada de Fergus Sutter e Jimmy Love, os primeiros jogadores considerados profissionais no futebol. Eles saíram da Escócia para jogar em um time de operários, e recebendo salário para jogar, o que contrariava as regras do jogo. Mas muito mais grave do que isso: tornando forte um time de operários, o que ameaçava o domínio da elite do esporte.

Agora, uma questão importante.

Esta não é uma série para se ver bola rolando, mas para entender como o futebol acompanhou movimentos sociais decisivos para a história da sociedade moderna e do próprio jogo.

E, também, ela é feita para entreter. Então, não busque precisão histórica, típica dos documentários. A série tem o objetivo de prender audiência, buscando fastos reais para conduzir a narrativa. Ela não é fiel a datas, sequer a clubes e títulos. Ela aproveita vários momentos, para resumir uma história importante.

O fato é que com os operários recebendo salários como atletas, e com eles se dedicando para o jogo, as equipes das fábricas ficaram mais fortes. Assustada, a elite se reúne e ameaça desclassificar o time de Fergus Sutter e Jimmy Love, na série o Blackburn. Mais do que perder o título, o Old Etonians estava assustado em perder o controle do jogo.

Kinnaird, o principal líder do time e da associação entendeu que não havia mais jeito. O futebol já fazia parte também da cultura popular. A propaganda, a venda de ingressos e os jogadores assalariados seriam caminhos tomados, com ou sem o aval dos líderes.

Então, com a ameaça de uma grande ruptura na associação e a criação de uma nova entidade, ele consegue mudar os votos dos colegas de associação e aceita as mudanças no futebol.

O Blackburn confirma a força que tinha e é campeão no último capítulo da série (na história o primeiro campeão foi o Blackburn Olympic, e não o Rovers de Sutter, numa final assistida por mais de oito mil pessoas). O time vence o Old Etonians de Kinnaird em 1883.

Com esse título, o jogo mudou também taticamente, mas não só isso. Dois anos depois, em 1885, o pagamento de salários passou a ser permitido, o futebol começou a se tornar um grande negócio e sabe quem ficou comandando toda essa transformação?

Arthur Kinnaird. O membro da aristocracia britânica foi o presidente da nova Federação Inglesa, a FA, de 1890 até 1923, por 33 anos.

O que é preciso entender

Sábio, Kinnard entendeu o momento. Cedeu, compôs e se tornou o líder de uma das maiores revoluções do futebol, mesmo sem mudar de lado.

A aula de Kinnaird está à disposição, assim como o livro de Piketty e os ensinamentos de Ihering. Todos mostram que a mobilização e a luta são indispensáveis para a transformação da vida e do jogo. Inclusive na proteção de direitos humanos.

Crédito imagem: Netflix

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